O novo ciclo das lutas, agora, sociais

Toni Negri, em entrevista a Revista do Terceiro setor, declarou que as lutas que se originaram em Seattle se esgotaram e que agora entramos em um novo ciclo, marcado pela emergência do precariado e dos imigrantes como sujeitos que produzem uma nova multidão. São os sujeitos que estão fora da relação salarial que agora resistem e constituem a liberação. Trechinho da entrevista:

" poderíamos afirmar que há um ciclo político… aquele dominado pela iniciativa das multidões, entre aspas, o ciclo iniciado em Seattle e que durou até a campanha contra a guerra – “No War” etc. E foi aí que esse ciclo terminou. Mas no interior desse ciclo abriu-se outro, que não é político, mas social. No momento em que se fecha o ciclo político, há um outro que cresce, o ciclo social, no qual as novas realidades da globalização – a flexibilidade, a mobilidade, a precarização da força de trabalho –, tudo isso gera essa nova situação, que é de hegemonia do trabalho cognitivo, que está se abrindo. Então você me diz: “Bush perdeu”. Mas não sabemos o que vai acontecer. Não é suficiente ele perder uma batalha para afirmar que a multidão ganhou a guerra. O Bush perder uma batalha é uma coisa. Mas a questão é outra: temos uma situação de transição, bem aberta. O que é muito importante é que hoje se abre um novo ciclo social, baseado sobretudo na luta contra a precarização, contra a pobreza etc. "

Negri em Buenos Aires

Uma contribuição de Negri para quem estuda o tema Resistência: as lutas globais entraram em um movimento de crise. Em uma curva descendente, como diz o filósofo. Por um outro lado, há um novo ciclo de lutas globais em ascensão: trata-se das lutas do precariado e dos imigrantes.

Na Argentina, Negri deu uma entrevista ao Página 12. Corri e traduzi, com meu espanhol de leitor, para deleite de todos nós. A entrevista completa está no meu outro blog, chamado de texto completo. Mas vale aqui uma boa citação:

Como o Sr analisa o movimento de resistência global?
Em profunda crise. O que começou em Seattle, seguiu em Gênova e continuou no movimento contra a guerra, declinou brutalmente. Disto se nutriu a reconstrução da esquerda tradicional. Mas o interessante é que no interior dessa curva descendente começou uma nova curva, agora, ascedente, protagonizda por lutas sociais de novo tipo, que se dão ao redor fundamentalmente do trabalho precário e da imigração.

Complexo de Harry Porter

Na última edição do Caderno Mais, da Folha, há uma crítica confusa do sociólogo alemão Robert Kurtz sobre o livro Multidão, do Negri e Hardt. O título da resenha é Complexo de Harry Porter. Não entendi muito bem, mas há uma passagem que gostei. Trata-se de quando Kurz mostra que o trabalho hoje é material e o produto dele imaterial. Gostei porque esclareceu que não há separação entre essas duas esferas. O que ele esqueceu é que o trabalho imaterial é produto de uma recomposição do manual com o intelectual. Por exemplo, este post é produto da minha força-cérebro, que produz essa linguagem na forma de mensagem colocada em suporte digital, contudo, tive que realizar um trabalho manual, ao digitar todas essas frases. Logo, o trabalho imaterial recombina o manual e o intelectual, não os separa como na época fordista, em que uns produziam manualmente e outros tinha a função de comando.

Em primeiro lugar, nenhum trabalho é "imaterial", tampouco o trabalho nos setores da informação e do "conhecimento"; sempre se trata da combustão de energia humana. Imaterial é a maior parte dos produtos desse trabalho, mas justamente por isso esses setores não podem sustentar a reprodução social, cuja base permanece sendo o "processo de metabolismo com a natureza" (Marx) e, portanto, é material. (Robert KURZ)

Dossiê Negri

Pessoal, a seguir há 10 posts sobre a palestra do Antonio Negri ontem em Nova Iguaçu. Queria dizer que o relato online se diferencia do das mídias tradicionais. São impressões minhas, em que tento ser o máximo possível literal em relação às palavras e fatos que rolaram na palestra. Isto porque o que eu escrevi veio muito de tradução, então sempre rola aí uma traição, principalmente porque as tradutoras espontâneas às vezes não dão sequência à fala do palestrante, o que fez com que eu desse um certo prosseguimento a algumas falas soltas do Negri.

Sorry por qualquer problema.

Antes do Negri começar

Cheguei ao RJ, ontem. Comprei O Globo no aeroporto. Sabia que iria sair alguma coisa do Antonio Negri. Para minha surpresa tinha duas páginas. Delícia, li tudo rapidamente. Cheguei no hotel. Não podia entrar: só depois das 12h. Circulei pela cidade: Copa (tomei café), depois Botafogo (me sinto em casa lá, onde fui a Prefácio ver e comprar alguns livros). Almocei no shopping Botafogo. Já eram 12h. Entrei no hotel meia hora depois.Queria ir a Nova Iguaçu, onde ocorreria a primeira palestra do Negri, chamada de A riqueza dos pobres. Liguei para Francis: "eu vou", disse. Ela: "Tá maluco. É longe demais. Mas cuidado ao voltar". Aí me desanimei, é muito longe mesmo. Pensei em um plano B: assistir Eros, de Antonioni e Sandermberg. Aí resolvi ligar o Beppo (Giuseppe Cocco): "Tem uma vaga no carro. Vamos lá. Vamos sair às 13h30 do hotel Ipanema", ele disse. Maravilha. Corri, tomei banho, comi rápido, peguei um táxi e cheguei lá pontuamente.

[concentração] Como é bom ver os amigos. A amizade tem uma potência especial. Lá encontrei Beppo (muito feliz), Léo (Leonora Corssini) e Geo (amigos da Revista Global) e Yann Moulier (sociólogo francês). No saguão do hotel esperavam o Negri, que desceu uns 10 minutos depois que cheguei. Achei que ele está melhor que em 2003. Antes parecia mais "velhinho", agora, como diz minha avó, estava "mais corado". Fico impressionado ao vê-lo porque me parece que ele tem um olhar de incompreensão, no sentido de perceber, diagnosticar, entender a realidade e se colocar com uma visão de porque "os homens são assim". Ele tem respostas, mas queria poder ter mais respostas, porque sabe que as suas são poucas. Na entrevista ao Caderno Prosa e Verso, do Globo, ele difunde o pensamento do amor ao outro como condição da produção de encontro, de reuniões, de movimentos. No fundo, talvez, a idéia é utilizar o amor como condiçãopara dizer que "os homens podem não ser assim". Sem ser piegas, acredito que a filosofia dele nos contamina por conta de uma mensagem de não-ressentimento do mundo, mas de crítica a ele. O tempo do meu olhar de observação foi o suficiente para chegar companheiros de caravana. Fomos em três carros para Nova Iguaçu, uma cidade que lembra Cariacica, no ES. Totalmente excluída de tudo e com uma gestão de esquerda para reerguê-la.

[Vai começar a palestra] Chegamos lá em ponto às 14h. Já não tinha mais fone (de tradução) para todos. Mas consegui o meu. Também já não tinha lugar para todos. Era um teatro para 140 lugares. Estava lotado. Sentei no degrau, no meio do teatro, entre os dois blocos da esquerda. Queria ver tudo de frente. Nem à direita, nem à esquerda. Centrado. Havia muitos petistas (com a arrogância e a auto-suficiência de sempre, mas também com o desejo de transformar o mundo de sempre). O prefeito Lindberg Farias já conversa com Negri eo Beppo na mesa de palestrantes. Sentei em frente à mesa, no meu degrauzinho, como em um cinema lotado, o filme ia começar. O Mestre de cerimônia ler uma curta biografia do Negri. Abriram as cortinas. O prefeito fala da satisfação do Negri em Nova Iguaçu, blá, blá, blá… blá, blá, blá… A platéria mexe as pernas, quer ouvir o filósofo. Ele pega no microfone. Agora vai.

Negri recupera a metáfora da transformação

O prefeito Lindberg Farias contextualiza o local onde a fala de todos estavam localizadas: "estamos em uma cidade de 1 milhão de habitantes. Aqui 50% não tem esgoto em suas casas. E essa cidade vai discutir com uma dos maiores pensadores de esquerda do mundo". O prefeito cria um clima cordial e também produtivo (como mobilizar uma cidade para reverter a miséria?).

Negri começa a sua fala. Retoma a metáfora da transformação. Afirma que ela é útil e é o ponto de aglutinação da militância da esquerda (um certo devir esquerda, eu diria). "Hoje a transformação do mundo passa por dois aspectos. Romper a potência neoliberal do poder americano e criar frentes comuns de resistências, novos espaços de liberação. A situação é dramática, por vários pontos de vista", apontou o filósofo sobre o fato de o poder impericano produzir estratégias de mobilização social e a necessidade de se criar uma liberação e uma resistência a isto.

A globalização pertubou o pensamento socialista, diz filósofo

Negri ainda realçou o impacto do processo de globalização no pensamento e prática da esquerda no mundo, ao afirmar que a globalização chacoalhou a idéia do que seja transformação. "A globalização pertubou o debate e o pensamento socialista, porque propõem a unidade na ordem mundial. Unidade do mercado (o controle da moeda). Unidade do uso da força (como estratégia de exercício da soberania imperial). Unidade das condições de comunicação (a mídia como único relato)".

O filósofo afirmou a impossibilidade de negar esse processo. Um leitor de Negri deduzia a partir dessa fala que antes havia uma perspectiva do fora (o regime socialista soviético e suas derivações), algo que não há mais hoje. Há uma ordem mundial única, mas que dentro dela figura sujeitos de liberação, de resistência produtiva. "Ou se aceita o jogo dessa complexidade ou não há qualquer possibilidade de mudar a esquerda. Vamos pensar, por exemplo, a noção de classe operária sob a perspectiva da globalização. A classe operária – como é pensada classicamente – está isolada, porque os mecanismos de valoração da mercadoria não está mais dentro das fábricas, mas fora delas. A valoração está nas camadas intelectuais do trabalho. Então a redefinção do que seja classe operária passa por integrar essas camadas intelectuais".

“A pobreza tem dois rostos”

"Aumentado de fala", Negri vai chegando em uma alta frequência , quando afirma que não é a necessidade que move o sujeito. Soa como um soco a ideologia da esquerda tradicional. O que move o sujeito é a luta. "Não existe necessidade objetiva. Não há isso. O que há sempre é uma luta constante para resistir aos mecanismos de produção da miséria", diz.

Em seguida traduz a sua visão sobre que seja a riqeuza do pobre. "A pobreza tem dois rostos, dizia Marx. O primeiro é o reduzido pelo capitalismo com seus processos de exploração. O outro rosto é o máximo de potência. O pobre tudo pode produzir. Ele tem de produzir por viver no limiar da ausência". Toni Negri aponta para os militantes declarando que esse é um paradoxo produtivo, que não podemos esquecer ao fazer militância.

A crise é do capital e do sindicato

Aquilo que era esperado de Antonio Negri seria o comentário sobre a crise política no Brasil e o devir esquerda. Engraçado que a fala era esperada no mesmo dia que o P-SOL se envolvia com a crise também, com o recebimento de mensalinho de um senador do partido. Negri contextualiza a crise política brasileira como algo que não se restringe à nossa localidade.

"Não me assusta a crise. A crise envolve um impulso descrescente da política, ao mesmo tempo em que há um impulso crescente das lutas sociais. Veja o caso das lutas globais. Se é verdade que o ciclo de lutas globais está em crise é porque o poder neoliberal também está. Eles [o poder americano] perderam. E há nessa forma de perda a derrota do capitalismo. As lutas políticas tem de acontecer novamente. Elas que vão mexer com o capitalismo. Na Europa por exemplo, elas estão ocorrendo. É a luta do precariado. Contra as formas de precarização do trabalho. A luta é por deslocamento, pela renda mínima. É o cognitariado tirando impulso, força, da miséria em que se vive. É tão séria que a luta é também contra o sindicalismo. Por que o sindicalismo defende o emprego, benefício somente pra quem tem salário. No Primeiro de Maio o precariado foi às ruas também contra os sindicatos que não mais o representa. É só dentro desse quadro geral de crise que podemos resolver os problemas".

Esquerda: abra-se ao precariado

Negri é indagado pelo prefeito Lindberg Farias: como acumular forças para produzir a mudança social? O ex-deputado relata que no Brasil as forças de esquerda realizaram aliança com setores da burguesia nacional (como um contraponto às forças monetaristas) e acabou "não dando certo". O resultado foi a crise política. O filósofo italiano responde que viu e viveu uma repetição de crises da esquerda. Concorda que a capacidade de resistir tem muito haver com o acumúlo de força, de alianças. Mas deu opinião que levou a aplausos longos pela platéia:

"Estou convencido que é fundamental tentar sempre novas aberturas, como se aliar a setores da produtivos, como a indústria, diante do que é o parasitismo do sistema financeiro. Só que hoje existe uma outra abertura que precisa existir: a abertura às forças do conhecimento. Não podemos subestimar as forças do conhecimento. Esse é um fato estratégico do desenvolvimento econômico mundial. Pode parecer realista demais, mas não é. Ao contrário, é alta a necessidade de articular projetos sociais com a produção intelectual. O que está acontecendo no século pós-socialista: o trabalho está ficando cada vez menos industrial. Os capitalistas, através das técncias neoliberais, mobilizaram socialmente a produção. Colocaram a sociedade no trabalho. E são os intelectuais que dão valor à produção. Impõem a possibilidade de mudanças industriais, formam novas elites. O trabalho intelectual é um elemento fundamental que não exclui o capitalismo (por isto que o poder neoliberal se articula) . Então é necessário se abrir à força do conhecimento para compor uma novo acúmulo de forças, para produzir novas resistências. Entrar nesse terreno é produzir uma ética do comum. Muitos amigos me indagam dissendo: 'Nossa, mas você não ver quanto miséria tem aqui do seu lado'. É um discurso que dá entender que o trabalho imaterial é algo utópico frente à realidade de miséria. Mas é o contrário. Só esse setor (o intelectual) renova a sociedade e expulsa essa miséria. Não adianta: a aliança com a indústria não vai fazer voltar o pleno emprego. Agora para produzir trabalho intelecutal, imaterial, é preciso ser livre. Por isto que o capitalismo bota limite a liberdade hoje, coloca a não-expressão. E a liberdade do trabalho intelecutal pode vencer o capitalismo. É necessário organizar o precariado, que são todas as pessoas que trabalham fora da relação salarial, como os trabalhaodres dos serviços, dos servi;os industriais, os imigrantes, os informáticos etc. Essas são massas que estão se tornando as maiorias. Não é à toa que na França foram às ruas contra os sindicatos. É porque o sindicato ainda sustenta que o emprego é a única solução. E o precariado produz fora da relação salaial, produz na circulação social. Por isso que projetos como a renda universal e a política de cotas se tornam centrais: nào é um prêmio, é a base para mobilizar toda a sociedade.

Novamente, a platéia foi além dos aplausos, gritando muitas interjeições. Foi o momento mais legal. Senti que as pessoas completamente conectadas. A miséria nossa de cada dia foi valorizada e potencializada. O papel de Negri, como filósofo, se realiza. O prefeito Lindberg atento e completamente tomado. Todos nós. Beleza.