Governar obedecendo: políticas culturais e minorias sociais

Fabio Malini | Departamento de Comunicação Social | Ufes

Boa noite! Eu gostaria de agradecer o convite feito pela organização do evento, em particular, ao Fabrício Noronha, essa alma inquieta, que insiste numa existência provocadora e numa cidade recheada de possíveis, numa política da vida. Agradeço a provocação que ele me fez, sobretudo porque ele sabe que o meu tempo é o dia, e à noite, tenho dificuldades de concentração. Uma provocação, porque é um convite ao encontro com a cena local, a cena cultural da cidade, uma cena da qual me afastei desde 2009, para testar novos mundos. Então é um convite ao retorno a esta cena, um retorno para colaborar na produção cultural na camada física e lógica do território. Agradecido.

Queria saudar a todos os colegas da mesa, a Ana Laura e sua delicada escritura; ao João Gualberto, maestro com sua notória emerência universitária; a Eliane Dias e a sua história de luta na produção cultural paulistana; e ao Guilherme Varella, quem eu acompanho desde das memoriais lutas no campo do direitos autorais.

O título desta mesa é “A Cultura como gatilho das Transformações do Brasil”. De fato a cultura e a informação hoje possuem uma centralidade nas transformações dos processos produtivos. É verdade, nesse capitalismo turbinado, que não cessa de incorporar nossas diferenças, nossas invenções, nossos modos de resistir, nossas estéticas, nossas comunidades, nossa linguagem e a sua regulação algorítmica, toda nossa força cérebro, e  faz com que nosso corpo fique ávido por movimento, mas nossa alma intensamente cansada, pois então é a criação, a criação – mais largamente a cultura, que inscreve na mercadoria conceitos como exclusividade, inovação, tendência, valor agregado, fazendo com que todas as dinâmicas econômicas – de um café colhido a um software desenvolvido – tornam-se produtos de uma “economia criativa”.

Essa centralidade cultural, obtida após o advento de processos produtivos just in time, fez com que o eixo da produção saísse da fábrica para as metrópoles. E nas metrópoles todo um conjunto diversificado de coletivos, empreendores políticos, políticas estatais de fomento, agenciamentos experimentais, grupos de inovação, foram criando redes de cooperação produtiva, de modo que não há cidade no mundo, nesse capitalismo, que prescinda de todo uma vitalização de suas espacialidades a partir do trabalho dessa multidão de singularidades que cooperam. Em algumas cidades, a fábrica, ainda baseada na crença que é a própria centralidade do desenvolvimento, na própria convicção que é a diferentona, insiste em apontar que o comum – ou seja, o ar que respiramos, a água que tomamos, a linguagem que processamos – nada tem a ver com ela. Assim, o ar, pesado de toxinas; o mar, pesado de minério, a água, recheada de lama, constrange a metrópole, que se vê freada em sua vocação criativa.

Quando falamos “centralidade da cultura” não estamos brincando. Não é um acordo com o regime de tolerância à “cultura do pó preto”, que atravessa linhas e mais linhas dos poderes, sedimentando uma Cultura Exclusivista, de uma Elite que tema compactuar com esse tipo de Desenvolvimento, que condiciona o criador aos departamentos do marketing. Quando falamos em Centralidade da Cultura significa que afirmamos uma Centralidade dos Movimentos Sociais da Metrópole. Afirmamos um governança, uma política, um programa, cuja gestão e fabricação são dos Movimentos Metropolitanos. A metrópole é a nova fábrica.

Então eu gostaria de falar desses nossos sintomas metropolitanos, que demonstram o divórcio entre o regimes da “cultura da centralidade” e o da “centralidade da cultura”. E aqueles que ainda militam na “cultura da centralidade” sabem que vivem seus últimos momentos, porque sabem que a tendência (aqui o termo é bem no sentido marxista) de reunião, tesão pela criação, pela cooperação, pela conexão, pelo encontro, aponta para uma inteligência difusa cuja centralidade da cultura reside no trabalho da metrópole.

Então eu quero mostrar e refletir alguns sintomas dessa perturbação cultural. Reforçá-las. Marcá-las. E tirar dessa conversa três programas, três eixos urgentes dos movimentos metropolitanas.

O primeiro desses programas eu vou chamar de “deslocar o pobre, recolocar as minorias”. Queria começar com um relato. O relato é de Luiz Mario de Andrade, de 39 anos, morador de Cariacica. Mario teve o filho e sobrinho, ambos negros, barrados num shopping da cidade. Os jovens, que seguiam para o cinema do shopping, denunciaram que os seguranças liberavam adolescentes brancos, enquanto jovens negros com boné e cordão eram barrados. A velha cultura da centralidade, de origem escravocrata, se mostra ainda pesada sobre aqueles que pensam que, através do acesso ao consumo, teriam direito à realização plena de sua cidadania. O Senhor Mario precisa ser aplaudido, por denunciar esse processo de naturalização da superioridade, denunciar essa ideia de que a criança pobre precisa estar guetizada, imobilizada, barrada em seus processos coletivos e de andanças pela metrópole. Ele merece, por sua corajosa denúncia, nosso aplauso. Muitos aplausos.

Coletivos de jovens de periferia que fazem do encontro, do contato entre os corpos, dentro do nosso paraíso consumista, passaram a ser alvos nos radares de comerciantes de shopping, brutalidade da polícia e de liminares da justiça. Angelo Bortolon, mestrado em Comunicação e territorialidades da Ufes, encontra uma figura subjetiva reveladora em sua observação sobre os rolezinhos no Moxuara: o ‘segurança do shopping’. Eu tenho muitos amigos que são ou foram segurança. Quase todos eles são muito afáveis no trato cotidiano. O segurança, frequentemente negro, é a peça mais frágil e mais humana – talvez a única – dos sistemas de controle que regulam o consumo cultural. Em seu estudo preliminar, Angelo aborda então um segurança e o indaga sobre o que ele pensa dos frequentadores dos rolezinhos: “uma gente à toa que não tem nada para fazer em casa e vem pro shopping deixar a gente doido”. Essa frase é uma chave de respostas. Porque esse curto-circuito nas estruturas de controle, me parece, o elemento da potência da vida. Mas, de outro lado, o “nada pra fazer” é tão sintomático de uma busca contínua por uma subjetividade-marca, que o movimento capitalístico que aprisiona – e despotencializa – esses movimentos. A cidade, espinhosa para a negritude deixou ali, no lugar onde a cidade é puro controle, numa brecha consumista, a possibilidade de se encontrar seguramente, mas a velha política escravocrata atravessa todos extratos de classe. O que eu quero dizer é o seguinte: precisamos dar um salto no pensamento de formuladores e gestores: deslocar nossos esforço do pensamento do pobre (como termo quantitativista e economicista) para as minorias sociais (o que significa ser favelado, mulher, negra, lgbt).

Abordo isso porque esse caso dos rolezinhos demonstra que a inclusão social via consumo tem seus limites. O trabalho vivo da metrópole precisa fazer florescer os coletivos e grupos minoritários, porque é a população favelada, feminina, lgbt, indígena, infantil e todas essas subculturas fantásticas, que são os grupos que verdadeiramente interessam potencializar.

Esses meninos ganharam, eles atravessaram a ponte. A multidão ganhou. Mas eles vivem exilados em sua própria cidade. Mas, vejam, eles dizem, como Jim Morrison: “vocês têm o poder, mas nós somos em maior número”.

Eu me lembrei, a partir desse caso dos rolezinhos, de um texto maravilhoso do Foucault, O Nascimento da Biopolítica, quando Foucault argumenta que o capitalismo não é um propulsor de liberdade, mas um regulador de liberdade. Este é um ótimo livro para debater esse poder sobre a vida (a marca, o consumo, o rolê) e a potência da vida (a descoberta da transgressão e a insistência em dobrar o poder). A liberdade tem uma centralidade no capitalismo: de expressão, de compra e venda, alfandegária, de associação etc, mas não é plena, porque o capitalismo é uma regulador das relações livres. Parece-me que o rolezinho faz parte desse movimento de direito à mobilidade tão transversal, depois de junho de 2013, em todas as cidades brasileiras.  Que nossas políticas culturais tenham como foco as minorias sociais e que essas políticas contribuam e produzam uma economia compartilhada, um ‘mercato’ cuja centralidade não seja a de galgar os 1%, mas seja distributiva, digna e solidária.

Um segundo ponto do programa: precisamos multiplicar os sensores urbanos e rurais. Temos um desafio importante que é a de transformar os cidadãos em sensores, criando uma tecnopolítica a partir de dados coletados a partir de tecnologias sensoriais, ampliando os modos de participação e interferência nas políticas públicas. Não faltam exemplo de disruptura social do homem midiatizado. As excepcionais cobertura midialivristas durante as mais variadas manifestações na Grande Vitória demarca que a disputa da opinião, do ponto de vista, da razão pública dependerá cada vez mais da transformação do cidadão conectado com suas tecnologias móveis em protagonistas de uma cultura colaborativa, que faz, com que seus seu agir digital interfiram no modo de organização da cidade. Para isso, é hora de incentivar hackapps, hackatons, ocupações tecnológicas, ações midiliavristas que mudem a cidade. E amplie a transparência do Estado.

É inadmissível que a gente não possua estações de medição da poluição do ar que sejam feitas a partir de sensores e tecnologias de baixo custo (Arduínos e seus sensores). É uma política vital para que a gente não assista monitoramentos da água do mar sendo feita por instituições comprometidas com o 1%. Se cultura quer ser central, é preciso engendrar uma tecnopolítica para manter independente – do ponto de vista do pensamento cultural – os atores da cidade.

Um terceiro ponto desse programa: governar obedecendo. A cultura revitaliza, agora, ocupando os espaços. É uma ocupação que requer riscos. Não haverá alternativa para governos que pensem de outra maneira. O sintoma mais precioso de quem governa terá de governar obedecendo é a sequência de ocupações que explodiram após junho de 2013. Não digo apenas os ocupais em praças e instalações públicas, digo também as ocupações artísticas, urbanas, experimentais, tecnológicas. São exitosas, mudam a mentalidade política. Uma das ocupações políticas fundamentais é a retomada carnavalesca na cidade de Vitória. O Carnaval no Centro fez uma geração inteira deixar de temer o espaço para habitá-lo, e assim perceber que esse Centro de Vitória é uma periferia produtiva a ser ocupada. Com problemas? Sim, é necessário cumprir com demandas sociais, mas essa consciência se descobre enquanto se luta. Um processo constituinte é algo lento. Mas aquilo que era impossível ontem hoje é um programa factível.

Estamos a ouvir “el run run”, o barulho que vem debaixo. Que o Carnaval possa deslocar o eixo das políticas da “centralidade dos grupos consolidados” para a “a agência descentralizada dos movimentos”. Esses movimentos não caíram no conto da “revitalização”, essa concepção que transforma qualquer diferença em pastiche para turista (nada contra, que o turismo se faça com a multidão). O Carnaval deixou o seu recado: não se trata de revitalizar, mas de ocupar. E ocupando traz um modelo de governança: “governar obedecendo”. Por isso que a política da coalização já era. Não funciona, não está mais no horizonte. Porque ela vai dar no mensalão, no trensalão, no merendão, no petrolão. Nisso: num sistema que fecha escola para pagar credores públicos. A ocupação requer trabalho material e imaterial, vivo, cooperantes e autônomo. Parece que agora a gente consegue ver aquilo que estava diante de nossos olhos na forma de sensorium. Agora façamos ocupações, e que se crie uma governança com essas ocupações, que se teste modelos deliberativos que tenha a rua como acontecimento, e não apenas as estruturas cansadas da representação. Mais assembleias horizontais, menos deliberação representativa.

Ao deslocar a cultura da centralidade para a centralidade de cultura precisamos trazer novos léxicos: um github pra cultura, uma pirate bay pra cultura, dar fork nas políticas culturais, criar app para cidadãos, dinâmicas que coloquem a cultura no centro, não como recurso, mas como um bem comum. A transformação sem a defesa do comum ficará barrada, eclipsada, de fora do shopping.

Teatro Carlos Gomes, 03 de março de 2016

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