Fala sério, Maurício de Souza!

O criador da Turma da Mônica, Maurício de Souza, disse, em nota, que a Magaly (do Youtube) não é a Magali da Turma da Mônica, mas uma oportunista precária que vive da Magali dele. Disse isso para concluir que a cópia mata aqueles que vivem da cultura. Copiar é tão criminoso que a própria “turminha” tem o Ronaldinho e o Pelezinho, né, Maurício? Veja como a cópia mata a cultura!!

A Magaly do Youtube é apenas um dos inúmeros mashups da Magali da banca. Além de apresentar a Magali para aqueles que nunca a leram, a Magaly da internet mostra outras coisas:

1) a contribuição do “amador” para a dança. Há um batalhão de DJs/VJs e um batalhão de coreógrafos de olho nesse corpo amador que se expressa em vídeos amadores. Em certo sentido, o mashup demonstra como não é tão difícil desmontar o pastiche que são essas dancinhas dos ídolos pop.

2) O mashup precisa ser um direito hoje.  A nova lei dos Direitos Autorais, que a ministra Ana do Ecad retirou da Casa Civil, prevê e garante a generalização dessa prática da recombinação, típica da linguagem das novas mídias.

3) um hit da internet pode servir de objeto para outras criações, quando não gerando mais faturamento para outros  (a indústria cultural) do que para o próprio original (nós, os cidadãos idiotas).

Sobre esse terceiro aspecto, assista seguir um vídeo bem legal de uma executiva do Youtube sobre a relação entre mashup, criação e indústria. E veja o que efetivamente deve ser o verdadeiro problema do “direito autoral” nas novas mídias: como nos remumenar pelo trabalho de fazer o transmedia que tanto as indústrias culturais desejam.


PS: Pedro, meu filho, é assinante da Turma da Mônica. Disse-me que sabe que a Magaly não é a Magali. Porque esses bonecos são tudo “gente dentro”. Pedro tem 7 anos.


“Painel de controle”, um ebook sobre controle, imagem e tecnologia

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“Pocos reconocen realmente que el ordenador no nació
de la era de la información sino de la era del espectáculo” (Alex Galloway)

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Um boa referência para quem curte estudar imagem e sociedade do controle é o ebook “Painel de controle”, em espanhol. O blog dessa turma que produziu o livro também é bem interessante. Li o artigo sobre Videovigilância como gênero, uma reflexão sobre o uso das imagens de videomonotaramento na produção de ficção e na participação do universo midiático. E também a ótima entrevista dessa turma com o Alex Galloway (galloway@nyu.edu). Um bom momento desse ping pong: Galloway faz crítica aberta a Barábasi. Traduçãozinha (bem livre mesmo):

Por que Barabási tem tantos desejos de proibir a organização rizomática? Qual é a forma arquitetônica do poder e como a afirmação de Barabási ajuda a naturalizar esse poder? No final, sou levado a perguntar não qual rede temos, mas qual rede desejamos. Há uma certa retórica ingênua em torno da liberação das redes, a antihierarquia, “a informação quer ser livre” e todas essas coisas.  Mas Barábasi indica é o contrário disso: não queremos que as redes sejam livres gastamos toda a energia em aboli-las através de uma avalanche de reorganização retrógradas, piramidal. A partir disso, então o problema principal, para utilizar uma terminologia psicoanalítica, é que as novas mídias são fundamentalmente sádicas, quando de fato as tratamos como se fossem masoquistas. Este é o problema fundamental do desejo hoje. Mas, para além deste método clássico de “crítica da ideologia”, também noto que Barabási oferece uma resposta muito reacionária a uma pergunta muito progressista.  Não é bastante conveniente que esta nova tecnologia se pareça com as redes corporativas ou inclusive monárquicas descentralizadas e centralizada de outrora? De novo me parece que este enfoque carece totalmente de imaginação. No lugar disso, eu coloco a seguinte pergunta: Como pode a rede distribuída, em si, oferecer uma forma nova de organização e controle, sem recorrer aos anacrônicos (mas familiares) diagramas? Responder a esta pergunta significaria encarar de maneira direta a essência sádica das novas mídias. Mas Barabási responde a esta pergunta com um gesto de desdém: o que se acreditava ser um rizoma é de fato uma árvore! Quanto mais ratificada se vê essa sua afirmação nos estudos de teoria dos grafos e modelos matemáticos, mais ela se reduz a uma pura projeção de fantasia. No lugar disso necessitamos de anti-histórias totalmente novas da tecnologia, histórias da tecnologia desde o olho do furacão.

Biopoder e a fábrica social

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O que a ciência nos entrega é uma grande sabotagem social.
(Antonio Negri)
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Antonio Negri insiste em demonstrar que a conceituação sobre biopolítica é ambígua. É, de um lado, a vida como objeto de governo; mas, de outro, a vida que não se oferece plenamente como dominada, abrigando toda a generalização da resistência. Isso – a ambiguidade – não se revela como dual, mas interior às próprias dinâmicas da vida subsumida ao poder: “toda dominação é sempre também uma resistência”, cutuca Negri em La fabrica de porcelana, p.46). Temos aí toda a filosofia política do antagonismo muito presente na obra do italiano. Só para reforçar: antagonismo negriano não tem pretensão de criar sínteses dialéticas. Só há derrotas e vitórias.

Em Negri, a análise da biopolítica é desenvolvida no marco da subsunção real do trabalho no capital, o que significaria dizer que não há mais tempo da vida, um tempo fora da relações de produção capitalística, porque “o tempo de trabalho inundou o tempo da vida”. De forma que toda nossa linguagem, nossa corporeidade, nossa comunidade, enfim, tudo aquilo que antes se dizia como campo da reprodução é  o locus preferencial da mercantilização e da captura dos capitais. A vida toda é mercantilizada, não importa sem em bytes ou se em átomos.

Não é dificil evidenciar que o  terreno da reprodução é hoje um locus produtivo de valor.  É só se debruçar sobre o conflito entre grandes corporações tecnológicas (Google, Facebook, Apple etc) para testemunhar como boa parte delas se dedica a fabricar máquinas imersivas por onde a vida passa e se fixa nos termos e códigos de uso de suas plataformas 2.0. Máquinas que hospedam a vida na forma de “status”, curtições, “atualizações”, “preferências”, “posts”, fotos, recados, testemunhos, enfim, modos de vida que estão cada vez mais dentro da dinâmica desse poder revitalizado do capitalismo 2.0 (veja toda a polêmica sobre a apropriação de dados privados então saqueados por agentes instalados nos ambientes do Facebook, Google,Twitter etc).

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Opinar e punir

A Europa sempre protagonizando a tendência em criar algum tipo de tecnologia de poder dos mais infames. Dessa vez, liderado pelo governo da Espanha, a União européia estuda a possibilidade de controlar bancos de dados em que cidadãos expressem “opiniões radicais na rede”, segundo relatório aprovado em julho de 2010.

Via: Cuarto Poder

Mayara Petruso e a liberdade de expressão na internet

Passado uma semana do fim das eleições presidenciais, o caso Mayara Petruso já caiu no esquecimento. Mas relembrar é viver.

Logo após anúncio da vitória de Dilma Roussef, no dia 31 de outubro, enquanto os eleitores petistas comemoravam, uma onda raivosa na internet associava a vitória de Dilma aos votos que recebeu dos nordestinos. 7 em cada 10 votos da região Nordeste foi para a candidata do “cara”, que obteve 56% dos votos válidos. A ciberonda anti-nordestina era o retrato fiel á dupla operação midiática dessas eleições. Por um lado, a imprensa nacional passou quase um ano com o meme “o nordeste vai ser o fiel da balança eleitoral”; por outro, a candidatura de José Serra pautava uma agenda política (o medo, a moral e a família) conjugada a uma virulenta campanha de disseminação de trolagens virtuais e telefônicas das mais baixas contra a candidata do PT, levado a cabo pelo vice, Índio da Costa, e pelo marketing online tucano, com seus bots spammers. Esses dois fatores acabaram servindo como ingredientes para liberar geral os eleitores conservadores mais radicais. Foi aí que Mayara Petruso apareceu e disse (e depois foi amplamente combatida e detonada na própria internet):

Nordestito não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado. Mayara Petruso.

Mayara Petruso externalizava aquilo que “estava no ar” já algum tempo: o ódio contra o voto dos pobres, principalmente o dos nordestinos. E ela acabou por servir de bode expiatório para toda uma cultura ventilada no período, denunciada pelo ótimo artigo de Maria Rita Kehl, no dia das eleições do primeiro turno. A reação rápida contra Petruso na internet (seu nome foi assunto mais twittado no mundo, em determinado momento) deu o tom da polarização Serra x Dilma. Mais discursos odiosos surgiram na rede, agora, contra Petruso, que logo se deletou da web. Sumiu, virou poeirinha de bits. Mas a máquina raivosa ficou presente, polarizada. Naquele instante, o Eu Mayara – aquele cartesiano – foi-se da internet. Mas a máquina odiosa, onde Mayara se instalou para produzir seu discurso, continuou de pé, presente na cabecinhas daqueles que pensavam, sob a égide de um distanciamento e de uma crítica da realidade, que seus enunciados eram construções autênticas de uma consciência plena de si, quando, na prática, ao reproduzir o dito do regime secular de poder da produção de opinião no país, só fazia repetir uma variedade de enunciados que dizia que tudo era culpa do nordeste. Pois que, por um lado, a crônica política conservadora dizia com todo afinco que o Nordeste seria o causador do crescimento eleitoral de Dilma, levando a todo tipo de argumentos mais simplistas, do tipo: quanto mais se é pobre e com pouca escolaridade, mais se vota com o governo de Lula. Logo, o Nordeste é Dilma; como se o Brasil fosse amplamente desnordestizado no Sul e dessudestizado no Norte e Nordeste. Essa era uma crítica fina da crônica política, imagina! E, de outra parte, essa máquina incitava a negativa contra aqueles que decidiam seu voto no interior da “concepção nordestina” do voto, isto é, na libertação daquela posição escravocrata de resignar-se ante aos poderosos, afirmando a sua visão de mundo. 56% dos votos válidos expressaram essa potência nordestina para além da política do medo, do preconceito e da moral difundida pelo outro lado.

Para quem entende um pouquinho de internet sabe que nenhum perfil é isolado. Ninguém está sozinho numa rede social. Ele está conectado a outros, dentro de um mundo específico, numa zona de conforto, onde aquele que escreve comunica-se para “pares”, que recebem, em geral, bem o seu discurso. Quando há dissidência, com frequência, ela é respondida. E se a discordância teima em existir, o usuário no Twitter bloqueia a oposição, quando não “unfollow-na”. Se houve um efeito colateral dos piores nessas eleições foi o usuário-eleitor ter percebido que sua timeline ficou todinha homogênea. Éramos produtor e consumidor de uma rede homogênea de enunciados. Estávamos numa tautologia das mais perigosas, a rede política experimetava aquilo que geralmente os jornalistas vivem diariamente: a agonia em verificar que os jornais vivem em um mundo só; e que a repetição é a forma mais difundida de se criar a verdade dos fatos . Eu me supreendi, por exemplo, no day after, em ver que minha timeline estava um tédio só, com um monte de gente repetindo bordões e palavras de ordens pró-Dilma, candidata em quem eu votei. Comecei, a partir daquele momento, a entrar em, e se filiar a, outros mundos para sentir toda pluralidade que faltava à minha rede. Nesse sentido, todos nós tivemos um pouco de Mayara Petruso nas nossas cabecinhas. Não no sentido de incitar o racismo. Mas de ser impaciente com a dissidência, com o ponto de vista contrário. É claro que nem toda dissidência significa uma abertura à possibilidade de uma dialogia, tampouco nos faz tolerantes a racismos, moralismos e ódios de classe.

Agora o curioso foi um movimento muito estranho: o de imputar a Mayara o status de criminosa, por ter afirmado aquilo que muitos outros afirmavam na internet. Vale à pena ressaltar que o discurso de ódio deve ser separado de um crime de ódio. O discurso de ódio se combate com a produção de discursos de liberdade, de produção e afirmação de direitos. Ao buscar prender e arrebentar, como numa espécie de linchamento público, o que se devolve para sociedade é mais discurso de ódio. Uma coisa é dizer que vai matar; outra é matar. Em países de forte tradição da liberdade de expressão, não há impedimento/censura à circulação dos discursos de ódio, porque eles são concretos e nada velados na sociedade. Ao conhecê-los, a sociedade toma medidas para contrapô-los, na forma de discursos, ou na forma de leis. No caso Mayara, a OAB-PE entrou na justiça acusando-na de incitação pública ao crime. Não só ela, mas “todos” aqueles que twittaram algo semelhante contra os nordestinos (inclusive, tweets feitos por nordestinos). A OAB entrou na justiça para defender a raça pura nordestina contra qualquer tipo de violação racial na internet. Será que se alguém pedir a seu amigos virtuais para fumarem maconha, a OAB-PE vai denunciar o caso como incitação pública a um crime? Há aqueles que dizem que a liberdade tem limite. Sem dúvida, há inúmeras responsabilidades a cumprir quando se diz algo. Mas a afirmação do ódio, infelizmente, é regido pelas mesmas normas da afirmação do amor. E, politicamente, cada vez mais, vamos precisar de atuar publicamente na descontrução do ódio, sobretudo, o ódio de classe, num país que, nunca dantes na história, ver as desigualdades de classes se reduzirem.

A censura ao Twitter e a inquisição que “resiste” na Ufes

“Todos nós temos poder no corpo” ( Michel Foucault )

El desarrollo del maquinaria revela hasta qué punto el conocimiento o knowledge social general se ha convertido en fuerza productiva inmediata, y, por lo tanto, hasta qué punto las condiciones del proceso de la vida social misma han entrado bajo los controles del general intellect y remodeladas conforme al mismo.

(Karl Marx in Grundisses)


Estava no Twitter. Relatava um debate público. Sua rede retuitava alguns dos seus comentários, que eram expressos como manda a Constituição: com seu Nome Próprio. Mais tarde, a patrulha bateu à porta. Em reunião de departamento, na Universidade Federal do Espírito Santo, foi acusado de – por causa dos seus tweets e os da sua rede – ter sido responsável pela imprensa ter descoberto a dissidência que ocorrera no debate público. Como se sabe, no Twitter, e esse é o barato total, todos se tornam imprensa. E a velha imprensa, quando se pretende atualizar, entra no circuito da rede tornando-se público e imprensa ao mesmo tempo. “Confessa. Não se faça de vítima. Foi você que embasou à imprensa. Estão aqui seus tweets e os de seus amigos que comprovam”, dizia, na reunião, um inquisitor dos novos tempos.  A seção de assédio moral foi totalmente montada. Em uma reunião na universidade, há sempre professores e estudantes. Os estudantes foram convidados a se retirar, um estupro às normas universitárias. “Mas nós vamos saber o resultado dessa reunião como?”, indagava um aluno. Eles queriam participar do controle social, mas foram retirados de cena. A partir daí, um grupo, de posse dos tweets, começava a sessão típica do velho autoritarismo brasileiro: “Confessa! Você não é da nossa turma. Pensa diferente. Confessa que foi você!”. O tuiteiro, sem saber, dizia: “vocês querem que eu confesse o quê? Qual é o ato ilícito de produzir comentários de debates públicos via Twitter?”. O grupo continua: “Se não foi você, foi você”, apontava o dedo para outro:  “naquela reunião você discordou da gente”. O segundo “acusado” diz: “você vai ter de afirmar isso em juízo”.  A reunião termina. Resultado: possibilidade de inquérito administrativo contra aquele que tuitou um debate público dentro da Universidade Federal do Espírito Santo. A abertura ou não do inquérito vai ser votado na próxima segunda. Possivelmente o inquérito não vai ser aberto. Um: o tuiteiro fez registro de uma atividade pública, divulgando um conflito de ideias no seio de um grupo social, algo que todo santo dia ocorre, inclusive no Supremo Tribunal Federal.  Dois: a possibilidade de inquérito foi deliberada ferindo todas as regras universitárias e todos os tratados de direitos humanos, no velho estilo “confessa senão morre”. E se o inquérito for aberto, vai ser aquele mico nacional, quiçá, internacional.

Para além do assédio e de ilações que conduzem a difamação e tutti quanti, a ação desse pequeno grupo de professores desse departamento da universidade revela a impaciência quanto à diferença e à produção de um espaço público amplo. Impaciência típica de gente que gostaria de ser stalinista, mas perdeu essa oportunidade história. O que resta de pravda só existe plantada como uma raiz nas cabecinhas que adoram a metáfora do sol. A contrapelo, a nova geração de professores da Ufes tem aquilo que muitos de seus pares gostariam de ter há 20, 30 anos: meios de expressão com larga abrangência a um clique. Uma geração inteira de professores universitários teve que engolir sapos de pequenos grupos autoritários, que alcançando o poder departamental, fazia uma espécie de perseguição a todo um outro que ousava dissedir (no sentido fonético também daquele outro verbo). Contudo, como um vírus do mal, aqueles que antes eram objetos da dominação, ficavam à espreita, esperando o dia nascer feliz e chegar logo a sua hora de assumir o poder, para fazer o mesmo com a outra geração que chegava ao recinto. Era uma espécie de ciclo sádico do poder universitário. Não se tinha a quem recorrer, senão ao próprio poder de cima, o que significava pactuar com o pessoal desse andar do alto, para além do bem e do mal.

Mas, depois de 89, as coisas começaram a mudar. Caiu o muro e produzimos um estado de direito. Mas também surgiu a web. E, quando uma maioria se arvora do direito, é na internet/web que vocalizamos primeiro a reconquista do direito. O ativismo, desde os neozapatistas em 1997 e de Seattle em 1999, já afirma que uma transformação social se faz usando a capacidade coletiva de comunicação global em rede.

O caso na Ufes é velho conhecido para quem agora acessa a internet e quem há muito tempo se comunica através da imprensa. Em geral, ninguém quer que suas convicções sejam questionadas. E menos ainda quando, ungido de um poder constituído, ver a verdade desse poder ser desconstruída. Porque a verdade do poder é a norma. Siga a norma e se submeta. É aquilo que Foucault dizia, num tom pra lá de irônico: “Todos nós temos fascismo na cabeça”. Na prática, a internet permite que a verdade não se torne homogênea, porque faz ativar todo um conjunto de poderes expressos em milhões de corpos enredados. Não há poder que perdure e não há verdade que se eternize na internet, como era nos velhos moldes da massa, do partido à imprensa. O poder em rede não se manifesta como um contrato (no sentido liberal) e nem como uma propriedade (no sentido marxista). Daí que toda uma série de casos passa empurrar as narrativas rizomáticas para aquilo que o ministro do Supremo Tribunal Federal Ayres Britto lindamente arguiu: a internet é o espaço da liberdade absoluta. A internet é um dispositivo genuíno de direitos humanos.

Alguns poderiam refutar: mas a internet rompe com o privado, tornando tudo que é íntimo, público. E o perigo da publicização exacerbada da vida é repetir aquilo que a internet diz ter superado: a verdade ser construída a partir de um poder massificado em rede. Assim, travestido de aura resistente, a quantidade de reTweets, a quantidade links trocados, a quantidade de comentários, a quantidade de atualizações, a quantidade de curtições, faz valer um poder de “pequenas maiorias” que produzem verdades universais. É verdade, há todo uma prática de pequenos Berlusconis da rede que, em busca de fama, muito dinheiro e má-fé, querem fazer da produção coletiva apenas efeito especial. Conjugado a esses pequenos, há todo uma cultura imersiva dos dispositivos web 2.0 que atiçam a repetição de bordões, preconceitos e lampejos do espetáculo midiático.

Contudo, é como cantava Jim Morrison contra o moralismo dos 60, “vocês têm o poder, mas nós somos em maior número”. Nessa levada psicodélica, pipoca na rede a dissidência. E os novos conflitos e lutas fazem da internet o seu principal locus de difusão. O caso das eleições brasileiras de 2010 é exemplar. O que há de mais interessante nelas não é a narratologia da história vencedora, que é uma chatice sem tamanho que se tem muita resistência em acompanhar (só para lembrar que a maioria da população não assiste ao programa eleitoral televisivo). Uma nova história política é praticada em inúmeros #foramagnomalta, #pergunteaoserra, #dilmabyfolha, #safadezoculta, enfim, constituindo-se como um conjunto de histórias não programadas pelos marketeiros das campanhas, com suas taras por #ondas #votenúmerotal. Essa é uma “nova história”, feita por muitos, mas que ainda não chega a todos, sem dúvida. Mas ela está aí, registrada, e é ela que vai sobreviver, acredito. Histórias que demarcam um corte com aquela sociedade brasileira de 89, que tinha um canal de TV com um jornal nacional, com share de quase 80% durante o debate Lula x Collor. E hoje, o mesmo canal transmite o debate presidencial tentando manter um share de 40% (competindo com as verdades dos internautas, que se antecipam às edições jornalísticas e publicam suas impressões do debate televisivo, em tempo real, no Twitter). O que mudou nas nossas vidas de lá pra cá senão a existência dessa possibilidade ímpar de termos acesso a mil outras verdades, a mil outros sujeitos? Não é à toa que a emancipação social só se faz dentro do comum e toda imanência conflitiva que é viver em uma democracia. Isso está conosco e ninguém tira. E é uma pena que alguns colegas professores universitários não se inspirem naquilo que vêem seus filhos/netos fazerem diariamente: comunicar suas posições, através também daquele computadorzinho maldito (só para lembrar que a verdadeira opinão pública do #fichalimpa nasceu da internet). Não retire da gente o que a gente herdou das lutas democráticas.

Dizem que, na reunião desse departamento universitário, alguém lembrou: “gente, esse é um caso de polícia” (lembrei de Gramsci na hora quando soube disso: polícia x política). Depois, na internet, ao saber do caso, alguém sentenciou, em tom de humor: quem tuitar na Ufes vai parar nos contêiners de Novo Horizonte, na #masmorraes. É isso. É preciso libertar as #masmorrases que perduram nas cabecinhas de muitos de nós.

PS: não citei o departamento da Ufes porque todo registro da reunião ainda não foi trazido a público. Na Universidade, as atas devem ser aprovadas pelos pares, no departamento. Logo, já se viu, né? Esta semana terá uma longa negociação por lá para fazer publicar uma ata que não responsabilize ninguém pelo assédio moral. Por isso que repito, reunião pública do Estado poderia ser transmitido em tempo real, para aumentar o controle social estatal.

PS2: #masmorraes foi um movimento organizado na internet, através do Twitter, denunciando a não publicação da nota “As masmorras de Paulo Hartung”, de Elio Gaspari. A nota seria veiculada numa edição de domingo, no jornal local A Tribuna. O conteúdo da nota era a denúncia do estado infame do sistema carcerário do ES. Através do Twitter, usando a hashtag #masmorraes, os usuários (com protagonismo do professor da Ufes @VictorGentilli) divulgaram todo tipo de material possível sobre as prisões do estado, de vídeos a fotos, de artigos a relatórios. A imprensa local, calada há tempos sobre o assunto, teve que prontamente atender o movimento da rede, publicando o que ocorria nas prisões do Espírito santo. O movimento #masmorraes ainda derrubou a popularidade do candidato do governador Paulo Hartung, Ricardo Ferraço, à sua própria sucessão. O governador abandonou seu candidato, numa reviravolta política das mais malucas no estado, e apoiou aquele que era seu opositor, o senador Renato Casagrande, que o governador tentou, como dizia a crônica política da época, desidratá-lo o tempo inteiro.  Casagrande (PSB) vinha à cena com toda pinta de independente e com uma presença digital que nenhum outro candidato se orgulhava em ter. O senador deve se eleger com cerca de 60% dos votos e é reconhecido por ser uma liderança histórica na defesa dos direitos humanos. E o #masmorraes talvez tenha sido o fato mais importante para as decisões políticas que envolveram a eleições ao governo do estado em 2010.

PS3: sou parte da rede que retuitou o debate do docente desse departamento. Faço retweet todos os dias e agora sei que o retweet é coisa séria, “assunto de polícia”. #safadezaoculta é isso acontecer comigo. #medo

Ps4: descobri que a inquisição universitária foi articulada por dois professores, eles passaram a manhã inteira imprimindo os tweets e os retweets para levar para a reunião, como se fosse a Polícia da Sociedade do Controle (P-Soco). Esses dois professores têm perfil no Twitter. Mas não gostam de dar Retweet. E falam coisas do tipo, refundar utopias, luta contra-hegemônica, anticapitalismo e tudo mais. Gramsci e Marx não devem estar gostando nada dessa vulgaridade.