Seminário Metapolarização e novas territorialidades

 

Estarei palestrando hoje no seminário internacional Metapolarização e novas territorialidades, organizado pelo Conexão Vix, grupo de pesquisa da Arquitetura, da Ufes. Titulei minha palestra de A Expressão do Comum dos Território Metropolitanos. Segue para quem quiser ler. No final, tem a palestra em pdf.

A EXPRESSÃO DO COMUM NOS TERRITÓRIOS METROPOLITANOS
Fábio Malini

Gostaria de agradecer o convite. Em especial, à professora Clara Miranda. Queria também parabenizar o grupo de pesquisa Conexão VIX pela oportunidade de debatermos os múltiplos desafios do território na contemporaneidade. Queria também dar as boas vindas ao Écio Salles.

Quando eu recebi o convite me senti, de certa forma, desafiado porque venho de uma perspectiva da comunicação, que como vocês sabem tem uma herança em estudar nossas dimensões simbólicas, sígnicas e midiatizadas – e aparentemente pouco da dimensão do terreno da fisicalidade. Então o território, a metrópole, sempre foi vista nesta perspectiva simbólico, imaginário, nesse âmbito da comunicação. O que a metrópole expressa, esta sempre foi a questão da comunicação. Então eu queria partir dessa perspectiva apontando que essa metrópole, o território de hoje, comunica uma profunda alteração no modo de estar junto, de produzir e constituir a política na contemporaneidade. Para tentar abordar um pouco essa transformação, titulei essa minha palestra com o nome de “A expressão do comum nos territórios metropolitanos”. Eu queria começar contando, ou melhor recontando – recontar é um vício de jornalista, como vocês sabem; queria recontar uma história vivida, por, nós capixabas, em julho de 2005. E a partir desse acontecimento tecer minha considerações sobre a expressão do comum no territórios.

A história é a seguinte: às 17 horas, dia 20 de julho de 2005, em Vitória, os estudantes se concentram para uma manifestação contra a proposta de aumento da tarifa de ônibus do sistema Transcol. A concentração era em frente ao Cine Metrópolis, na Ufes. Pois bem, lá, neste antigo espaço cineclubista e de resistência, agora com novos atores políticos, a cada minuto apareciam centenas de jovens que se reuniam para protestar contra a medida do governo estadual que estabelecia uma proposta de valor máximo de R$ 2 para o novo preço das passagens de ônibus do sistema Transcol. Seria o segundo aumento consecutivo no ano. Antes mesmo de começar a manifestação, os estudantes são surpreendidos com a decisão oficial do governo: a tarifa passaria a ser R$ 1,90 a partir do dia seguinte. Os estudantes então se revoltam e fecham a Fernando Ferrari, impedindo os ônibus do Transcol de circular. Mas não demoraria para a velha política autoritária brasileira aparecer. Chamado a higienizar o ambiente, o Batalhão de Missões Especiais trava com os estudantes uma verdadeira guerra, com direito a bombas e balas de borracha. Os estudantes correm para dentro do campus, protegidos da “imunidade territorial”. Mas as viaturas da polícia militar “invadem” o campus. Policiais dão tiros, atiram bombas de “efeito moral”. Não se intimidam com os limites democráticos. Os estudantes respondem com pedras, que atingem diversos ônibus na avenida. Uma estudante ferida na perna cai no chão. Um policial, a cerca de dois metros, atira em suas pernas e na barriga. Os estudantes gritam: abaixo a repressão! Muitos saem com um, dois, três, quatro e até cinco tiros de borracha nas costas, no abdomens, nas pernas, na cabeça. Os universitários e secundaristas começam a bradar: “estudante não é bandido!”. No outro dia na imprensa, o fotógrafo de um jornal estampa uma imagem formidável em termos jornalísticos: o exato momento em que o policial atira num estudante que estava de costas, totalmente indefeso à ação policial. Noutro dia, tomado por uma potência formidável, a população metropolitana grita: “não pagamos nossos impostos para ver a polícia atirar em nossos filhos enquanto eles protestam”, brada uma mãe na seção carta dos leitores de um jornal da cidade. Um outro diz: “não posso nem pensar em passear com a família, porque fico pensando em quanto vou gastar”. Assim, a população responde com demonstrações de apoio ao movimento dos estudantes, dizendo que a luta deles também era a luta de toda a cidade contra as medidas de espoliação urbana. Os militantes se reúnem, agora em frente a antiga Escola Técnica, na avenida Vitória. Era 12h30 quando saem em passeata em direção a sede do governo do estado. Mais de duas mil pessoas marcham, num protesto pacífico. Num revival formidável, os prédios do centro da cidade jogam papel picado sobre os meninos e meninas. Populares os aplaudem e os cumprimentam. Os motoristas buzinam, é um buzinaço, pela primeira vez em anos, não porque a manifestação atrapalhava o trânsito, mas pela identificação que o “custo-transporte” que pesa na composição de todos aqueles que trabalham. O governador, atônito, se manifesta, pedindo desculpas pelo “excesso” da polícia. No mesmo dia os estudantes começam a ocupar os ônibus. No dia seguinte, terceiro de ativismo, um grupo de 15 militantes entra nos coletivos, libera as catracas. Num impulso de inteligência organizada, as passeatas pela cidade mudam o seu rumo. Em vez de ir para a sede do governo do estado, decidem ir para o pedágio da Terceira Ponte. Lá chegando os ativistas aplicam a tecnologia do laissez-faire. Os carros passam sem pagar pedágios. A produção se torna livre do pedágio. Pela primeira na história recente não há engarrafamento para voltar para a cidade de Vila Velha. Na contramão, um burocrata do governo chama os manifestantes de “jovens desencantados com a política e à procura de uma bandeira para defender”. Para complicar ainda mais qualquer cabeça de cientista político, o movimento decide não ter líder, mas uma multiplicidade deles. É proibido levantar também bandeira de partidos. A estrutura representativa clássica do poder entra em curto-circuito. O poder não tem com quem negociar. Torna-se reativo a pressão de uma multidão. Depois de três dias, o governo afirma que vai manter o aumento. Os estudantes começam então a fechar as principais vias da cidade. As empresas, prejudicadas com atraso de funcionários e paralisação da produção, começam elas também a pressionar o o governo. O antagonismo aumenta: os estudantes pixam os ônibus e inscrevem nas peles dos seus próprios rostos dizeres como: “não pago”, “tá caro”, “abuso”; eles sentam no chão das vias públicas, o trânsito pára; eles colocam nariz de palhaço; eles ocupam os ônibus e obrigam os motoristas a mudarem as rotas, engarrafando outras ruas da cidade; ocupam o prédio da Ceturb ; e, por fim, ocupam o palácio do governo, gritando “ah, o palácio é nosso!”. Não demora para surgi rainda uma perspectiva estética do movimento, com suas faixas: “estudante não é otário, o aumento é arbitrário”, “esse aumento é mensalão”. No quarto dia de manifestação, o alvo é a Rede Gazeta. Os estudantes fazem protestos em frente a mídia local, que passa a apoiá-los para não arranhar sua imagem institucional. E o governo não volta atrás. O preço da passagem continua o mesmo. E os estudante, também. Na sexta-feira, quinto dia de mobilização, os militantes abrem as chancelas do pedágio da terceira ponte. Mais de 15 mil carros passam sem pagar. Os motoristas que por lá passam buzinam, aplaudem, se emocionam. Como dizia uma faixa, o dia “era por conta do Hartung”. Em vez de verde e amarelo, os estudantes pintam os rostos de “azul e rosa”. A semana havia acabado, mas os movimentos planejavam o dia D para segunda-feira. Mas antes disso, no final de semana, o governo estadual recua e reduz a passagem. Passado alguns meses, o governo reduz novamente para R$ 1,70, subsidiando parte da tarifa. E o movimento se dissipa.

Queria recontar essa história porque ela representa expressamente a emergência de algo que o teórico italiano Antonio Negri denomina de trabalho imaterial. Para o filósofo italiano vivemos num presente histórico num regime econômico em que a lógica que predomina é “vender primeiro, produzir depois”, bem o contrário da perspectiva fordista, quando se produzia primeiro, se vendia depois. Uma economia que produz sobretudo informação, imagens, serviços. O que torna a medida da produtividade, a medida do valor, já não é mais o automatismo burro, o trabalho mecânico, a força física. São requisitados dos trabalhadores sua inteligência, sua imaginação, sua criatividade, sua conectividade, sua afetividade – toda uma dimensão subjetiva e extra-econômica antes relegada ao domínio exclusivamente pessoal e privado (Pelbart, 2001). Repare bem a potência desse debate. Sei que boa parte da platéia é formada de profissionais ou futuros profissionais do urbanismo ou da arquitetura. Se analisarmos as transformações da profissão do arquiteto nos últimos 20 anos, possivelmente vocês verão, muito melhor que eu, é claro, que a profissão se desmaterializou. Ou seja, a produtividade do arquiteto se torna cada vez mais associada com a capacidade de produzir bens imateriais. Não quer dizer que o arquiteto não transpire, quero pontuar que a transpiração vai ser determinada pela qualidade imaterial do trabalho. Vou tentar ser mais claro. Quero dizer que hoje o que é inserido na produção de um projeto arquitetônico são estilos e modas (que são cada vez mais efêmeras, haja visto a anuais casas cor da vida), relações (ele é produto da interação do arquiteto com o cliente), afetos (a capacidade de deixar-se afetado por uma idéia, por uma opinião, por um sentimento), informações (toda a parafernália que o autocad disponibiliza), cultura (uma forma de habitar o espaço, de criar relações sociais no território, de solucionar questões urbanas) enfim, o que um arquiteto deposita num projeto é mais que o seu corpo, mas sua própria alma. Por isso que quando trabalha sua alma se cansa como um corpo. Mas essa não é uma característica laboral somente do arquiteto. Mas de toda força de trabalho. Um pedreiro hoje precisa saber o que é um living, um home, um estar íntimo, precisa saber negociar o preço de seu serviço, precisa decodificar a planta saída do autocad, precisa saber das tendências e modas de cor, decoração, saber um pouco de elétrica, de pintura, luminotécnica, enfim, precisa compor na sua força de trabalho toda um conjunto de competências que vão além do seu saber manual. Não basta ser peão. O trabalho precisa ser cada vez mais cognitivo. Portanto, o que se requer, tanto do arquiteto quanto do pedreiro, é a sua força-invenção, a sua força-solução, a sua habilidade criativa, os seus contatos. Portanto, é a nossa ciência, nossa imaginação, nossos desejos, nossa criatividade, nossos relacionamentos, enfim toda nossa vitalidade que é posta a produzir. O trabalho inundou todo o tempo da vida. Emancipamo-nos da fábrica, amém! Contudo, sentimos que parece que vivemos no mais alto grau de exploração, já que não é mais nossa corporeidade que nos é subtraído pelo capital, mas aquilo que nos une, aquilo que nos é comum: a nossa linguagem, a nossa sensibilidade, a nossa afetividade, a nossa cooperação, o ar, a água, o nosso meio ambiente, enfim, nossa cultura. Querem privatizar o comum: a nossa saúde, a nossa educação, o nosso mobilidade, a nossa cientificidade. É, portanto, a própria cidade com suas redes de produção e de circulação o objeto de apropriação e captura do capital. O território se transformou em uma fábrica difusa. Não podemos acreditar naquela percepção industrialista que é a fábrica o núcleo da produção. Isto não é verdade, porque quem dar produtividade a fábrica são as redes de produção que estão no território. Não fala agora de capital humano. Pois é capital humano está na cidade. Não fala agora em logística, esta está na cidade. Querem nos enfiar goela abaixo esse proto-industrialismo de novo mundo da expansão industrial, que não significa que vai nos tornar mais produtivos. O que torna mais produtivo é a mobilização desses ativos imateriais que estão espraiados pela cidade sem um ponta ou com uma incipiência de investimentos públicos. O que torna produtivo é a produção de uma fábrica do trabalho, é ampliar nossas capacidades de cognição, de competências culturais, de habilidades em gestão, nosso aperfeiçoamento técnico, nossas condições de desenvolvimento de uma força de trabalho rica em cognição. Isto significa produzir uma comum. E o que é a propriedade comum? A rede de transporte, por exemplo. É uma rede nossa. Uma rede comum. O que significa uma metrópole sem transporte? Nada. O transporte urbano, sobretudo nas grandes metrópoles, é o que dá a dignidade, a possibilidade de circular rapidamente nesse espaço. No espaço da comunicação são a informática e as telecomunicações as que possibilitam essa propriedade comum. O que vimos aqui em Vitória no ano passado foi uma verdadeira luta metropolitana. As lutas dos estudantes para manter deflacionado o custo do transporte significou uma pauta comum dos trabalhadores, dos precários, dos autônomos, dos trabalhadores liberais. Foi uma tentativa muito bem-sucedida de pôr a vida a resistir. No urbano, é o transporte que nos possibilita acessar os ativos que a cidade me oferta. Ele é condição para que acessar todos esses ativos imateriais necessários à produção. Numa economia profundamente marcada pela mobilidade, estar rapidamente em diferentes lugares é condição sine qua non para que a produtividade ocorra. É uma questão de logística do trabalho. O movimento de julho de 2005 demarcou essa luta para manter em patamares suportáveis o custo do transporte. Aumentá-lo significa ampliar o processo de exploração dessa nova força de trabalho. Resistir hoje então é ter direito a uma território comum contra os guetos, as metapolarizações típicas da cidade privatizada: a do shopping, a do condomínio fechado, a das academias de ginástica, a dos carnavais fora de época, a do transporte seletivo etc. Mobilizar os territórios hoje então é pôr esses recursos comunicacionais, relacionais, informacionais, logísticos, culturais como comum a todos que habitam esses territórios. Não nos iludamos: o conflito social tende a ocupar cada vez mais a cidade, porque é nela que se encontro as redes de produção e o repertório de ativos, principalmente, da própria vida que é posto no processo de valorização. É por isso que hoje é necessário criar uma infra-estrutura que permita aos movimentos sociais produzir, ao mesmo tempo, que luta. É tempo de apoiar os movimentos de cursos pré-vestibulares comunitários (e a cotas na universidade), de apoiar o movimento do software livre, de apoiar a luta pelo passe livre, de apoiar os movimentos de cultura da periferia e seus processos resignificação dos territórios, de ter uma infra-estrutura pública de acesso à internet, para além dos business das telefônicas, de ter uma política de renda garantida universal. E creio eu que ainda só a esquerda é capaz de empreender tal desafio.

Muito Obrigado!

Palestra em a expressão do comum (pdf) , em a expressão do comum (doc)

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