A Gazeta, o Conselho de comunicação e a cafonice da lata do lixo

“Uma pessoa se converteu em portal” (Howard Rheinghold)

Em editorial do dia 02 de dezembro, o jornal A Gazeta, do Espírito Santo, repetiu o bordão do movimento todos contra a comunicaçãofilia: os conselhos públicos de comunicação são ditatoriais. O editorial, num estilo que lembra os panfletos da imprensa de Berlim Oriental, tem lá a sua pravda: na  área de comunicação, quem manda é “nóis”, os veículos independentes e limpos da relação incestuosa com o poder. A linguagem chula do editorial lembrou àquela mesma do deputado Gratz (“eu tenho o poder”); olha isso: “Resta apelar ao bom senso do governador e torcer para que ele mande a proposta para o local mais indicado: a lata do lixo”.

A revolta do diário se originou na proposta da Assembleia Legislativa, que indica a criação do Conselho de Comunicação no governo de estado do Espírito Santo. O Conselho teria a função de pensar as políticas públicas de comunicação social, uma das poucas áreas onde a participação popular ainda não chegou. Vocês sabem, né, onde a participação popular ocorreu (educação, saúde, meio ambiente, transportes etc), os “desmandos do Estado” reduziram bastante. Mas por que não pode haver conselho na comunicação para essa turma do contra? Inúmeros motivos. Um deles: o conselho pode pressionar pela gestão transparente dos gastos com as verbas publicitárias. E Hoje essas verbas são drenadas para o caixa dos grupos de comunicação do Espírito Santo, chegando ao absurdo de serem mais volumosas que o próprio investimento em segurança pública no Estado.

o que pode o conselho

O conselho não tem nada a ver com controle social. Não tem nem lastro jurídico para isso, do ponto de vista constitucional (estadual, inclusive). Alguém aqui imagina que, numa sociedade totalmente enredada, o controle de opinião é possível? Nem em Cuba, em que a internet é caquética e o governo tem cabeça de gente com delíriro persecutório, isso acontece, imagina no Brasil? Eu leio “desde cuba” há uns três anos. É um blog muito bom. E adoro os dos dissidentes chineses também (se quiserem saber como driblar os filtros censoriais da internet de sua empresa ou de sua repartição é só mandar um email para mim).

Conselhos de comunicação fazem aquilo que as constituições estaduais ou leis orgânicas (dar um google aí sobre isso!) dizem poder ser a prática de cidadania sobre o controle do Estado, porque, se tem uma coisa que a ditadura nos ensinou é que o Estado, deixado ao governo de poucos, vira o baluarte do autoritarismo e da trambicagem.

O Conselho de comunicação é um mecanismo público para que as políticas de comunicação possam se tornar “open source”, modelo público em que os dados são sempre abertos, a comunicação sempre compartilhada e o trabalho sempre cooperativo. “Muitos olhos, poucos erros”, reza o lema do movimento.

O conselho, por exemplo, pode exigir que os gastos públicos sejam disponibilizados integralmente a todos na internet, quando não deliberar pela criação de sites (baseados em tecnologias livres, diga-se de passagem) que disponibilizem o detalhamento de todos os gastos corporativos dos poderes de Estado.

O Conselho pode exigir que a contratação de profissionais de comunicação se dê através de concursos públicos, e não a partir de terceirizações amigas de aliados políticos.

O Conselho pode exigir e acompanhar investigações de violações ao direito sagrado da liberdade de imprensa, para que casos como o grampo de A Gazeta sejam punidos e não fiquem depois tratados na conversa miúda em jantares oferecidos por empresários de comunicação ao próprio grampeador.

O Conselho pode ser indutor de fundos de comunicação pública, participando na criação de mecanismos jurídicos que ajudem a regular os investimentos dos gastos publicitários, incentivando que um blog possa ter acesso à verba pública, tal como todas as empresas de comunicação.

O Conselho pode ser um grande parceiro no desenvolvimento de estudos técnicos e levantamento de demandas sociais para o processo de universalização da banda larga no Estado, um projeto, aliás, que o governador Casagrande se comprometeu, mas que não há pensamento político nos partidos para tocar tal empreitada. Casão vai precisar do apoio da sociedade.

O Conselho pode promover o assessoramento de editais públicos que financiem a produção de conteúdos como política de desenvolvimento do Estado, estimulando a economia criativa da região, fazendo com que as empresas de comunicação locais não fiquem à mercê de mecenatos e merchandising de empresas sem responsabilidade social.

A imprensa está sob controle?

Então, vejam, colocar o debate sobre o conselho como controle é desqualificar demais a discussão. Chega a ser ignorância mobral. É pensar que nós, leitores de A Gazeta, somos imbecis e não sabemos dar um google para entender o que significa conselhos participativos na democracia brasileira.

Eu votei contra o controle social dos meios na I Conferência Nacional de Comunicação, em Brasília, em 2009. Fui um dos delegados eleitos no ES naquela conferência fantástica em que os ausentes foram a representação da Abert e da ANJ (as teles estavam todas lá, a Bandeirante e a Record também). Do mesmo jeito que lá fui contra o controle social, sou AMPLAMENTE CONTRÁRIO a proposta dos “patrões” da ANJ – em que A Gazeta é signatária – em instituir conselhos de autorregulação da imprensa. Sou contra porque, em ambos os casos, tudo flui em uma única direção: (auto)censura, seja a um grande jornal ou a um blog.

É claro que a imprensa, principalmente a local, não tem tanta independência dos poderes estaduais, por mamar nas tetas das verbas publicitárias governamentais e fazer biquinho quando elas se escasseiam. E que na prática, como diria o Millor Fernandes, a independência da imprensa só dura seis meses, porque, a partir daí, ela vira dependente mesmo. E que no dia a dia amargurado de obtenção da sustentabilidade financeira, sobretudo para os meios impressos, é ardiloso produzir uma notícia de qualidade contra o poder (governamental ou empresarial),enquanto se vê financiado pelo mesmo poder, que ameaça mandando mensagens do tipo “se tiver crítica, dinheiro da publicidade não chega no jornal”. Sem contar ainda o fato de conviver com toda sorte de alteração tecnológica que faz vazar a audiência para outros meios e plataformas, principalmente as digitais. É dureza fazer jornalismo independente nessas empresas, porque os controles estão imanentes às relações que se travam na produção corporativa das notícias – mesmo assim há de se destacar um conjunto importante de denúncias que o jornalismo local realizou nos últimos anos, tendo seu melhor momento no “caso Gratz”.

Essa realidade de dependência ao poder local, somada ao opcional alinhamento ideológico a determinado governo, faz o “jornalismo de redação” entrar num  emaranhado complexo de adulação, submissão, incestuosidade e chantagens mútuas com os políticos e empresários locais. Vem daí o fato de as redações, como diz aquele funk, “estarem descontroladas”. Descontrole também que existe graças aos debates acalorados dos profissionais de redação, que são chatos e não aceitam assim passivamente a tese dos seus editores ou de “alguém de fora”.

O controle está na regulamentação do setor

Para além dessa dura realidade, há uma outra coisa: os jornais são livres. Podemos até criticar, do ponto de vista ético a postura da imprensa, mas faz parte da liberdade ampla de um veículo jornalístico apoiar o que quiser, de adular quem quiser e mandar o carro da reportagem para onde quiser. Quem não curte isso que se mude para China ou para os EUA (que mandou prender e arrebentar o dono do Wikileaks).

Agora querer materializar o controle social dos meios a uma função pública e constitucional dos Conselhos populares é ato golpista contra a democracia. De onde o jornal A Gazeta tirou que o conselhos públicos devem ser jogados na lata do lixo? Não há problemas ser contra a qualquer conselho, a dissidência é algo importantíssimo numa democracia. Mas querer que a sua opinião seja “a” verdade é hoje, no mínimo, cafona.

Há ainda um terceiro elemento nisso tudo, um ato falho do jornal naquele enfadonho editorial. Tem um passsagem assim: “Essa é a verdadeira motivação da iniciativa, que não deve ser confundida com a necessidade de um novo marco regulatório da radiodifusão”. Essa frase aí, de apoio à regulação do setor que o governo Dilma quer fazer, é um grande avanço do jornal. Mas o diário também sabe que, se não houver um novo marco regulatório da comunicação, novos negócios não surgirão. Mas o detalhe da frase é a palavra “radiodifusão”, que, do ponto de vista tecnológico, acabou há vinte anos. O paradigma dos canais já morreu, e os empresários do setor ficam fazendo eletrocardiograma de paciente morto. O marco regulatório tem como objeto o mercado digital, esse sim, o presente e o futuro da comunicação. E para ter marco digital, além dos radiodifusores, a propriedade dos meios precisará ser aberto às teles e a sociedade civil realizadora de conteúdos independentes. A questão do “controle dos meios” está exatamente no debate sobre o marco regulador. O controle da propriedade “é que é” o grande conflito que se avizinha. O controle das cabecinhas pensantes, isso, depois da internet, é utopia da esquerda e da direita.

PS: Enquanto isso, no Complexo do Alemão, um menino de 17 anos, de dentro da favela, pelo Twitter e pelo Justin.Tv, com seu Iphone 3GS, denuncia que os moradores estão sendo dilapidados pelos policiais do Rio, enquanto os jornais dizem que os “policia” são o Bem encarnado em pessoas. Controle já era!