Pois é. A vida ficou muito mais complicado. Depois de passar o semestre lendo igual a um louco, comecei a escrever a tese. Sempre acho que escrever dissertação ou tese é igual a fazer psicanálise. A diferença é que o divã é a cadeira e o psicanalista o computador. Você percebe que é bom nisto e péssimo naquilo. Ai, fica numa paranóia: melhoro o que sou ruim ou aperfeiçôo o que me dou bem. Gosto da primeira opção. Esse feriadão, então, fiquei me deleitando com a recuperação de uma bibliografia punk, mas que hoje eu entendo e que antes era insuportável de interpretar.
O primeiro capítulo da tese, denominei provisoriamente de O Sujeito no Capitalismo Cognitivo. Não terminei ainda. Mas todo já pronto no meu cabeção. Já separei os textos a usar e estou no trabalho homérico de organziar tudo em um raciocínio lógico. Bom… a hipótese desse capítulo é que as mídias colaborativas emergem no contexto da passagem do trabalho material (fordista) para o imaterial (pós-fordista). As várias linguagens colaborativas (blogs, fotologs, redes sociais, wikis etc) são um sintoma da capacidade dos sujeitos produzirem sem a necessidade do comando do capital. Trocando em miúdos: sendo a força-invenção o que demarca as novas relações de produção, sendo a nossa capacidade de comunicar, de criar, de se relacionar, de compor coletivos, enfim, de produzir subjetividade, o que agora é posto a trabalhar; nada mais do que útil compreender essa nova subjetividade cognitiva, imaterial. Mas, antes de entrar de sola no presente, quis recuperar a formação das subjetividas no capitalismo. Então a primeira parte desse capítulo é o nascimento da subjetividade, digamos, moderna — baseada na racionalidade econômica. Como o homem econômico é inventado e como, pouco a pouco, vai se metamorfoseando. Vou parar por aqui, senão vou escrever até amanhã.
Segue a primeira parte desse capítulo. Tem no formato .doc (vou fazer a transição para open office ainda este mês. O Word me irrita profundamente): Sobre as mutações da subjetividade no capitalismo
CAPÍTULO I
O SUJEITO NO CAPITALISMO COGNITIVO
1.1
A construção da subjetividade no tradicional e no moderno
A produção de subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer produção”. Felix Guatari [1]
Em 2000, quando Antonio Negri e Michael Hardt publicam Império, a defesa da tese do esgotamento da modernização já não constituía uma inovação teórica. A modernização, aquele paradigma em que a indústria e a fabricação de bens duráveis ocupam, no lugar da agricultura e da extração de matérias-primas, o centro da produção social [2], não lograria mais uma força a ponto de exercer um domínio sobre todas as outras formas econômicas de produção. A industrialização per si não representava, portanto, uma garantia indubitável do desenvolvimento. A fábrica já não aglutinava forças produtivas consistentes em torno dela. Seu modelo político de comando, o sistema fordista, então estruturado a partir da fábrica e que estendia seus valores para todo cotidiano, regendo o tempo social, a organização do espaço urbano, os regimes de lutas e antagonismos sociais, a construção da subjetividade, dava sinais de colapso.
Ser fábrica, ser massa, ser padrão, ser operário, ser disciplinado, não se constituía o projeto de vida das individualidades, mas aquilo que elas recusariam. Nem a própria fábrica desejava, no final do século XX, receber essa alcunha. Queria ser chamada de empresa. A lógica da produção e do consumo em massa pouco a pouco (principalmente após as lutas de 68) se tornaria objeto de supressão, tanto em planos teóricos – vide toda a filosofia da diferença e da autonomia bastante influente nos últimos 30 anos; quanto no plano das lutas políticas, que fez emergir movimentos absolutamente antidisciplinares, como os movimentos operários, estudantis, étnicos, feministas, pacifistas, ecológicos, urbanos, dos homossexuais, da contracultura, enfim, inúmeras iniciativas que recusavam a se conformar em corpos dóceis[3].
Os processos para nos tornarmos humanos, e a própria natureza do humano, foram fundamentalmente transformados na passagem definida pela modernização. Em nossa época, entretanto, a modernização acabou. A produção industrial já não estende sua dominação sobre outras formas econômicas e outros fenômenos sociais.
Para Negri & Hardt, um dos sintomas mais evidentes da falência da modernização é a alteração quantitativa dos empregos, ilustrada pelo declínio acentuado dos postos de trabalho industriais e na ampliação de oferta no setor de serviços, que incluem uma vasta gama de atividades: de assistência médica, educação e finanças a transporte, diversão e publicidade. Esses empregos, apontam os pensadores, são altamente movediços, e envolvem flexibilidade de aptidões, manipulação de símbolos, produção de informação, afeto e conhecimento[4].
Uma subjetividade excludente, marca da tradição
“A tradição não explica as rupturas”. (Antonio Negri)
Até antes do capitalismo manufaturado do século XVIII, a subjetividade estabelecia-se numa esfera do trabalho marcada pelas dimensões tradicionais dos grupos sociais. A produção dos sujeitos era uma atividade artesanal e especializada em um ambiente familiar e doméstico. Nas sociedades pré-modernas ele era uma atividade que demarcava um processo de exclusão, uma ocupação servil que suprimia os indivíduos da cidadania (da participação da arena pública, ou seja, das decisões políticas): “O trabalho era indigno do cidadão, não porque fosse reservado às mulheres e aos escravos, mas, ao contrário, era reservado às mulheres e aos escravos porque trabalhar era sujeitar-se à necessidade”[5].
Nas sociedades pré-modernas, o trabalho se restringia ao convívio familiar, à esfera privada. A casa era o espaço da produção material[6] e das necessidades da vida (reprodução). A liberdade, ao contrário, se localizava na pólis. “Nesse contexto, era inconcebível a idéia de ‘trabalhador’: servil e restrito ao doméstico, o ‘trabalho’, longe de conferir uma ‘identidade social’, era algo que pertencia à existência privada e excluía da esfera públicas aquelas e aqueles que a ele se viam assujeitados”[7]. Assim, a racionalidade pré-moderna constituía-se como sendo incontestavelmente tradicional (economia das necessidades).
Quem primeiro estruturou a passagem do tradicional ao moderno, do ponto de vista sociológico, foi o filósofo alemão Max Weber. Ele considerava que, antes da Revolução Industrial inglesa, no século XVIII, um industrial organizava seus negócios sem a contratação direta de uma força de trabalho. Ele comprava o produto acabado ao invés de produzi-lo.
“o industrial que utilizava operários em domicílios dava-lhes ampla autonomia em relação às formas de organização, ao número de horas de trabalho e à melhor organização das relações intra-familiares para levar a produção a termo. O empresário só aparecia com a produção acabada”[8]
Cabia ao industrial receber do produtor a encomenda em sua residência ou ir diretamente ao vendedor (geralmente camponês e/ou artesãos) para comprar as mercadorias.
… os camponeses traziam seus tecidos, geralmente feitos (no caso do linho) principalmente ou estritamente, de matéria prima que eles próprios produziam, à cidade onde vivia o produtor, e depois de uma cuidadosa avaliação da qualidade, freqüentemente oficial, recebiam por ela o preço costumeiro[9].
A razão econômica da subjetividade, marca do moderno
Agir de acordo com objetivos significa fazer funcionar mecanicamente o utensílio, a máquina, para atingir a meta pré-fixada A comunicação é do tipo monológica, vai em uma só direção: do projeto ao resultado final, o produto. ( Christian Marazzi )
Esse modo de produção econômica só se alterou por conta de um “espírito moderno do capitalismo”, diz Weber. Quando o industrial constituiu uma subjetividade moderna. Ou seja, quando a conquista do lucro se sobrepôs ao conforto da vida como principal valor que demarcava a subjetividade da época uma mutação que exigiu um trabalho mais intensivo do empreendedor.
Esse “espírito moderno”, garante Weber, foi determinante para que a industrialização ocorresse na sociedade, pois, antes mesmo da invenção da máquina de descaroçar algodão da indústria têxtil inglesa, em 1750, esse “espírito moderno” estava interiorizado no homem.
O que sucedeu foi, geralmente, apenas isto: um jovem qualquer, de uma das famílias produtoras sai para o campo, escolhe cuidadosamente tecelões para empregados, aumenta grandemente o rigor de sua supervisão sobre seu trabalho e transforma-os, assim, de camponeses em operários. Por outro lado, começa a mudar seu método de mercado, buscando tanto quanto possível o consumidor final, toma em suas mãos os mínimos detalhes, cuida pessoalmente dos fregueses, visitando-os anualmente, e, principalmente, ajusta diretamente a qualidade do produto às necessidades e desejos destes fregueses. Ao mesmo tempo, ele começa a introduzir o princípio dos ‘baixos preços’ e de ‘grande giro’.[10]
Esse “espírito moderno” então, diz Weber, estruturaria – a partir do século XVIII – um novo regime de subjetividade baseada numa racionalidade econômica, que se emanciparia de todas as outras subjetividades, as tendo sob domínio. A curiosidade dessa subjetividade moderna é que alicerçava em um elemento de irracionalidade, um elemento exterior ao próprio sujeito: o “homem econômico escolhe, de agora em diante, existir em função de seu trabalho, de sua empresa, e não o contrário”. [11] A subjetividade humana continha agora, de forma hegemônica, um desejo de “agir com objetivos”. E viver em função do trabalho estabelecia compor a sua vida a partir de uma relação de capital, como bem sinalizou Karl Marx ao nomear essa fase de acumulação primitiva do capital. As condições, portanto, para a emergência da relação salarial estavam dadas, já que agora o industrial precisava organizar um comando sobre o trabalho (por meio da relação salarial) que o permitia se libertar dos múltiplos produtores espalhados pelos territórios para submetê-los disciplinarmente na sua fábrica. Isso foi uma verdadeira invenção social.
A atividade produtiva desfazia-se de seu sentido original, se suas motivações e de seu desejo para tornar-se o meio de ganhar um salário. Deixava de fazer parte da vida para tornar-se o meio de ganhar a vida. O tempo do trabalho e o tempo de viver foram desconectados um do outro; o trabalho, as suas ferramentas, seus produtos, adquiriram uma realidade separada do trabalhador e diziam agora respeito a decisões estranhas a ele.[12]
a subjetividade é uma construção política
A subjetividade deve ser entendida como produto de um processo social. O sujeito, como Foucault claramente entendeu, é, ao mesmo tempo, produto e produtor, constituído por, e constitutivo de, vastas redes de trabalho social. O trabalho é tanto sujeição quanto subjetivação, de modo que todas as noções, tanto de vontade livre quanto de determinismo do sujeito, devem ser descartadas.
Antonio Negri
Contudo, essa racionalidade econômica não é uma construção fixa e imutável. Ao contrário, ela se altera por conta das mutações da subjetividade da classe operária que se inscrevem nos processos de trabalho de toda história do capitalismo.[13] Foi o operaísmo italiano[14] a escola de pensamento que mais contribui para essa tese, ao demonstrar que o desenvolvimento é produto de uma relação de antagonismo de classe. Quer dizer, da atuação dos sujeitos dentro de uma relação social. O capital não seria um ente personificado no patrão. Mas uma relação social que é produto do conflito entre subjetividades (a que comanda e a que é comandada, a que subordina e a que é subordinada). “A relação de capital se determina em relação às lutas, aos choques, aos conflitos que ocorrem em seu âmbito e que se determine em formas diversas”, diz Antonio Negri. [15]
Assim a subjetividade é destituída de qualquer determinação economicista para se constituir como construção política. É uma composição política de classe. Qualquer mutação dos valores que regem à subjetividade, portanto, estaria associada ao modo como as classes se compõem, se nomeiam e se antagonizam.
O operaísmo italiano torna o movimento da classe uma variável que independe da relação de capital para se constituir. O operaísmo vai, portanto, reler o próprio marxismo virando-o do avesso: a classe operária, através da luta, seria o motor de qualquer desenvolvimento. “São as lutas, dentro e contra o comando capitalista, que fazem a história”, insiste Negri. [16]
A subjetividade do capitalismo industrial deve ser lida então não mais de forma negativa, mas constitutiva. Trata-se, logo, de analisá-la como autônoma ao pólo do capital. A subjetividade no capitalismo pôde (e pode) criar situações imprevisíveis e soluções alternativas fora do imaginável. Ela é como um defeito, diz Toni Negri. Porque se constitui como um antagonismo (por ser múltipla) e não como um campo dialético (algo que interessa ao capital, por ser da sua natureza produzir comando, o que demanda uma estratégia de tornar as múltiplas expressões da subjetividade em uma única representação de poder).
Para evidenciar essa sua metodologia, Negri organiza uma periodização histórica do desenvolvimento capitalista para demonstrar os processos de subjetivação. Mas faz isto sem ser evolucionista, pois constata que a história é descontínua e não é pré-imaginável. “Depende sempre dos sujeitos dentro do processo”, diz ele. [17] Essa periodização é dividida em dois ciclos:
período da “grande indústria”, em que as subjetividades se baseiam na lógica do operário profissional. Vai de 1870 à Primeira Guerra Mundial, da Comuna de Paris à Revolução Russa; e numa segunda fase da grande indústria, em que as subjetividades se estruturam em torna da figura do operário-massa. Vai do fim da Primeira Guerra Mundial a maio de 1968;
período do capitalismo cognitivo, em que as subjetividades se tecem de acordo com a figura do operário social. Vai dos acontecimentos posteriores a maio de 68 até o atual presente histórico.
Notas Bibliográficas
[1] Guatari, Felix; Rolnik, Suely. Cartografias do desejo. 7ª edição. Petrópolis: Vozes, 2005, p.36
2] Negri, Antonio; Hardt, Michael. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.301
[3] Devemos o conceito de disciplina a Michel Foucault.
[4] Negri, Antonio; Hardt, Michael, op cit, 2000, p.306
[5] Gorz, André. 2003. Op cit, p.22
[6] A etmologia da palavra economia sintetiza bem a idéia do espaço doméstica como locus produtivo. Oikos (casa), nomos (administração, organização, distribuição).
[7] Gorz, André. 2003. Op cit, p.24
[8] Marazzi, Christian. Linguagem e pós-fordismo. Revista Lugar Comum. Rio de Janeiro: Nepcom, ECO-UFRJ, no1, março de 1997, p.43
[9] Weber, Max. A Ética protestante e o espírito do capitalismo. 5ª. edição. São Paulo: Pioneira, 1987, p.45-6
[10] Weber, Max.1987. op cit, p.44.
[11] Marazzi, Christian. 1997. op cit, p.42.
[12] Gorz, André. 2003. op cit, p.30
[13] Sobre a nova constituição de classe operária, ler NEGRI, Antonio. Ocho tesis preliminares para uma teoria del poder constituinte.
[14] Escrever algo sobre o operaísmo, a partir do texto do Yann.
[15] Negri, Antonio. Lição 01: do método histórico – causalidade e periodização. In: NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre o Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.60
[16] Negri, Antonio. 2003. op cit, p.54
[17] Negri, Antonio. 2003. op cit, p.58
Fábio,
Cheguei até aqui por causa da contracultura. É, estava navegando atrás do tema, quando o Google me trouxe até o post onde você a inclui como um dos fatores que permitiu o surgimento da internet. Dali até a tese, foi um link
Sabe, eu também estou fazendo “psicanálise”: é que estou escrevendo meu trabalho de conclusão de curso, sobre as formas contraculturais de jornalismo.
Foi um prazer ler o primeiro capítulo de tua tese. Achei muito interessante o tema e também a forma como você tece idéias. Quando cheguei ao fim do texto, lamentei ter aí chegado: queria mais
Abraços
OI, Silvia
Legal. Estou a continuar essa parte… Que bom que tenha gostado.
Mando o que tiver escrevendo para eu ler e linkar aqui no blog…
VAleu pelas palavras de ânimo. Me amarrei na questão contracultural do jornalismo. Como estás pensando isto?