“E, quando estavam reclinados à mesa e comiam, disse Jesus:
Em verdade vos digo que um de vós,
que comigo come, há de trair-me” (Marcos 14:18).
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O senador Magno Malta (PR/ES) anunciou que vai entrar numa nova Cruzada. Quer criar um projeto de lei que torna crime a criação de perfis falsos (os fakes) nas redes sociais da internet. Ele já não aguenta mais a quantidade de judas virtuais que espinafram suas atitudes políticas arvorando-se de sua própria face photoshopiada. Para ele, melhor seria se o cabloco o espinafrasse com “cara limpa e peito aberto”. Claro. Assim fica mais fácil de fichá-lo depois.
O fake da internet carrega o dilema do Judas, aquele criado pela cultura popular. Na tradição da malhação do Judas, no sábado de Aleluia, ninguém sabe quem fez o boneco e pendurou no poste, mas todo mundo adora malhá-lo. Quem é objeto da malhação fica possesso. E quer identificar – como quer! – quem foi o autor da brincadeira. Nada pior que ser o Judas do sábado de Aleluia. Magno Malta, como qualquer pessoa, sabe disso. Para político então, que tem imagem emoldurada pelas frases e maquiagens fakes do marketing de bruxas e magos, dói fundo na alma original ser objeto de gozação do populacho.
Se Malta fosse republicano-USA, parece que não teria dúvida: botaria no chilindró os “fakes” que publicaram no Wikileaks as tramóias do governo yankee pelo mundo. Contudo, o problema do republicano-tupiniquim é que ele defende coisas que a classe média conectada detesta, como criminalização do homossexualismo, defesa de pena de morte, redução da maioridade penal, mistura de religião e política desafiando o laicismo do Estado, para além de citações do senador em escândalos nacionais, como o da máfia dos sanguessugas. Por conta disso, a malhação virtual rola solta. Como Jesus na ceia dos apóstolos, a rede da classe média conectada (de A a D) sabe quem está a lhe trair.
O anonimato e a liberdade de expressão
Mas Malta tem aliados ingênuos pelo mundo. Alguns desses defendem a proposta do senador, assim… de costas, anteparando-se no fato de que, no Brasil, liberdade de expressão só vale se não houver anonimato. Mas, gente, onde se tem anonimato na World Wide Web? A web nasceu como um aplicativo assassino da lógica p2p da internet, por instituir a lógica servidor-cliente. Qualquer um que ameace judicialmente uma empresa hosting, dizendo que determinado site que ela hospeda tem sido calunioso, obterá êxito. O hosting tirará o site do ar. Um pouco de história básica de internet é capaz de elucidar essa mistificação de que tudo na web é anônima. Oh! Que falta que faz muitos não terem uma formação mais nerd!
E no mais, um pouco de estudo sobre a legislação constitucional brasileira também seria importante. Isso porque, na Carta Magna, a liberdade de expressão está associada à liberdade de imprensa, por isso que no Brasil se veda o anonimato. É uma regra lógica, se queres ser imprensa, tenhas nome e sobrenome. Contudo, como disse o advogado @tuliovianna, não há como a Constituição proteger o mundo dos babacas que gostam de falar da vida alheia por falar (virtualmente ou não). Infelizmente. Agora, se você, imbuído de ódio no coração, confundir babaca com crítico e quiser tirar o último da internet, só trará ainda mais confusão para o seu lado. Não se trata de ser passivo, mas, de ser matreiro, afinal, há tempo de juntar pedras e outro para atirá-las, como reza a Bíblia.
Contra o controle e a censura
A principal bandeira do ciberativismo atual é a de garantir o anonimato da identidade e a privacidade dos caminhos percorridos pelos usuários na internet e, desta maneira, permitir que uma quantidade enorme de inovações expressivas possam nascer. E evitar que a liberdade de expressão não se restrinja, a anteriori, às regras que regem os termos de adesão do Orkut, do Twitter, do Facebook, enfim, de toda uma parafernália de novos dispositivos da web por onde vazam a criação intelectual da sociedade. É por isso que o ministro do STF Carlos Ayres já afirmou: “a internet é o lugar da liberdade absoluta”.
Outra luta é que se crie um porto seguro para as empresas que hospedam perfis ou sites que realizam críticas sociais duras. A trolagem de babacas difamadores só existe porque não há direitos garantidos para a crítica e a sátira na internet. É mais democracia que reduz a babaquice. E não limitando a capacidade das pessoas de se indignarem. Por exemplo garantindo às pessoas o direito de criar um fake para satirizar um outro fake. Mas como fazer isso se, nos dispositivos da web 2.0, não há direito que mantenha online um usuário dissidente, seja o troll @MagnoMalta45 ou o fake “Falha de São Paulo”?
Estou de acordo com o senador quando diz que a internet é terra sem lei. Mas sei, diferente dele, que aonde não há cidadania vigora a lei do mais forte. Ou seja, a lei do poderoso. E poderoso quer é tirar do ar a internet, porque a Rede tem tudo que o poderoso detesta: dissidência, memória e uma vontade imensa de não se ser governado. Seria interessante, senador, Vossa excelência participar mais ativamente do debate sobre o Marco Civil da internet brasileira, para não pagar o mico de buscar penalizar um espaço que é carente de direitos e deveres, ou seja, de cidadania.
Mas por que Magno Malta tem interesse na criminalização? O motivo também é simples: seu grupo político é o que mais é objeto de críticas e campanhas nas redes sociais da internet capixaba. Durante as eleições de 2010, surgiu uma proto campanha no Twitter chamada “todos contra Magno Malta”. Não adiantou nada. O senador se elegeu com uma votação esplêndida, demonstrando que ativismo online somente como click é só um simulacro fetichista de gente que pensa que participação social é clicar no mouse e tomar uma cervejinha enquanto se dá uma paquerada no MSN.
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Onde tudo começou
(para quem quiser ler um pouco mais)
Em 2004, quando Mark Zuckerberg criou o Facebook, algo de novo acontecia na história da internet: os perfis. Até então a identidade online se realizava em três dispositivos: o email, a comunidade virtual e o website. Seja lá um “eu institucional” ou um “eu pessoal”, nesses três “lugares virtuais” o problema da identidade estava instalado. Isso porque, em nenhum deles, o “eu” estava diametralmente virtualizado na internet.
A onda, na década de 90, era a discussão interminável sobre o fato de a rede operar a “desconstrução” da identidade moderna, aquela firmada na forte noção do indivíduo centrado em seu cogito. O nome/sobrenome deu lugar ao nickname (apelido) nas salas de bate-papo das comunidades virtuais, ao ID das trocas de e-mails e mensagens instantâneas do ICQ e à pagina na Web. Essa con-fusão de nomes gerava amor (literalmente) e ódio (só lembrar da principal questão da crônica jornalística do período: “você sabe quem está do outro lado do computador?”). Contudo, a realidade virtual jogava para o usuário uma potência formidável: a identidade (de classe, de gênero, de raça, de lugar, de idade etc) não era mais a mediação principal para que trocas e relações sociais ocorressem. A mediação era a própria linguagem. A capacidade de invenção e da narração de si ao outro. E isso todo mundo sabe que não é nada fácil de se fazer. Tornar-se interessante ao outro através da linguagem – sobretudo na sua mais mais densa, a escrita, já que a internet depende de literacia – era uma atividade olímpica.
Contudo, depois da invenção de Zuckemberg, essa internet de raiz foi para o ralo. A geração 00 do século 21 popularizou a sociedade dos perfis. O Eu iluminista estava de volta. A “face” virtual deveria agora ser a mesma do “mundo real”. Era a primeira vez que o “problema” da identidade se resolvia na internet. O Facebook conseguia aquilo que era quase impossível: face virtual era a mesma da “real”. Quarta-feira de cinzas tinha chegado na internet. Para qualificar esse novo momento da web, a “face” passou a estar imersa a um ambiente online onde todos vigiam todos. E a “curtição” coletiva nesses lugares 2.0 será a de produção de conteúdos, de graça, para as empresas descoladas e gente boa do mundo digital.
Manuel Castells, no seu último livro, Communication Power (ainda sem tradução no Brasil), voltou ao seu tempo marxista e denunciou a ideologia 2.0, dizendo que esses ambientes imersivos baseados em perfis programam a cooperação social em função de interesses corporativos, que passam longe da vocação democrática da própria internet. Não é à toa que o inventor da web – para quem tudo na rede deve ser aberto, público e linkável – denunciou os facebook´s e orkut´s da vida como aplicativos que matam a própria web (lembram da web matando a internet?).
O mundo interior, longe do psiquismo, se realiza cada vez mais nos perfis que os indivíduos possuem nas redes sociais. É um mundo previsível e forjado dentro de um capitalismo onde a subjetividade é forjada e vendida com exclusividade. Um mundo interior em que só a felicidade fetichista e exibicionista vigora. Quem desobedece o mundo propagandístico das redes sociais é “banido” do sistema. E não precisa ninguém pedir permissão ao “grande irmão” para detonar um “mensagem” ou um outro indesejado. A tecla delete é imanente a todos que estão dentro do mundinho Eu 2.0. Assim, Eu agora retornou, com força total.
Mas o “adeus a carne” é mais forte do que a quarta-feira de cinzas. E por motivos óbvios: o primeiro é puro desejo inventivo. E foi dentro dessa pulsão que o fake nasceu. Ele entorta a lógica de programação desses sistemas 2.0, reprogramando o sentido de seu uso. Ele hackeia a atenção que é dada a um assunto e o desvirtua de sentido. Ele hackeia a maquiagem marketeira de um político e faz a crítica fina às suas posturas públicas. Num momento em que o nome/sobrenome invoca desejos negativos online – como o pedido de assassinato da presidenta por um atirador de elite ou do afogamento de nordestino em São Paulo –, nada mal ver surgir um movimento de invenção, típico da própria vida rebelada, que cria um falso para explicitar o verdadeiro. Isso nem Baudrillard imaginava: o simulacro sendo carnavalizado.
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