.
Entrevista que concedi ao Diego Viana, repórter de Valor Econômico, o que o ajudou na produção da reportagem Crítica 2.0, divulgada hoje, na versão impressa do jornal.
.
– Os processos criativos da internet, particularmente os processos colaborativos, alteram radicalmente o sentido das noções de “objeto”, “autor” e “leitor”, que são basilares na lógica tradicional de circulação de bens culturais, em que se insere a crítica. Que espaço tem a crítica na lógica digital?
Há na internet a generalização da crítica, seja ela acadêmica ou seja a mais factual (aquela cujo principal “gênero” é a resenha). Se a crítica sempre se constituiu como o campo do “franco falar”, por tabela, vivemos um período amplo da franqueza na análise dos produtos culturais. O digital tem uma particularidade: nunca gera peça única. Se há uma iamgem que demonstra como a crítica se faz na internet é aquela que vemos quando há um fluxo intenso de respostas que ocorre numa lista de emails: << Re: Re: re: re: >>. A crítica na internet é como uma espiral infinita de respostas. Veja o filme “tropa de Elite II”. Numa pesquisa rápida no Google, há mais de 600 mil resenhas do filme, desde aquelas escritas por grandes especialistas em cinema brasileiro até outras, por adolescentes especializados em filmes de ação. O que isso significa? Qua a franqueza se torna a cada dia que passa o elemento mais vital da crítica digital. Porque o crítico, na internet, é público também. E sabe que a crítica se faz em comunidade. Nesse sentido, a crítica na web se revela ainda mais passional, porque o leitor do blog de cinema quer mesmo é consumir o jeitão de escrever de seu blogueiro e não necessariamente a qualidade de análise estética do crítico. A internet não funciona muito como um lugar do theorós, ela é um dispositivo de Eros.
– Tem gente que atribui justamente à internet, com seus comentários de blogs e Diggs, com os retweets, com o “like” do Facebook etc., a propalada “derrocada” da crítica. Outros dizem que essa derrocada é muito anterior e obedece a preferências do mercado ou à incapacidade da própria crítica de dialogar com o leitorado, mas a internet pode ser, ao contrário, um novo sopro para a crítica. A crise existe? Onde a cultura digital se encaixa nisso?
A crítica vive o esplendor com a internet. É o seu melhor momento. A web hospeda desde a crítica acadêmica até aquela mais rasa, que beira ao comentário do “mimi”. Sem dúvida, o filtro feito por esses agentes que funcionam como editores coletivos (likes, diggs, retweets etc) é um dispositivo que faz circular um sentido geral sobre determinada obra. Uma reputação que se faz sem centro, sem editor. Isso não significa que o crítico morreu. Ao contrário, se analisarmos as críticas mais reputada na web, veremos que se saem melhor aqueles que se dedicam ao fazer crítico diário, com qualidade e ótima formações humana e especializada. Até porque o internauta sabe que, na web, há uma promiscuidade do link. Sabe que aquele grupinho que faz a comunidade de determinado blog fica sempre circulando os mesmos links, as mesmas opiniões, para fazê-las presentes no campo maior da crítica. Então o usuário se protege contra isso buscando mais referências. Quando temos buscadores, como o Google, o caos informacional é reduzido. E podemos mergulhar nos pontos de vista alternativo. Um exemplo banal. Um usuário que precisa viajar. O mercado de turismo hoje funciona, em boa parte, graças à reputação coletiva de blogueiros, youtubeiros, facebookeiros,comentaristas, que dizem, com toda franqueza, a qualidade dos hotéis, dos pacotes das agências, analisam aos serviços de determinada cidade, enfim, é a crítica que nos torna mais bem informado sobre “aquela cidade”. E se discordamos, qualificamos tudo ao contrário do que foi dito nos mesmos lugares onde tudo se apresenta como mil maravilhas. O mesmo ocorre com o cinema, a literatura, as artes visuais, enfim, com toda gama de manifestações culturais. Elas dependem da produção coletiva da crítica para ganhar mais complexidade e também para serem desmitificadas. De novo, não há pensamento único na internet. E os canônes, marcas de uma economia da escassez – do editor, da indústria que intermediava a cultura – são cada vez mais difíceis de aparecer, porque a internet revela também que a criação é recheada de links. Um escritor da nova geração, que começou fazendo um blog, por exemplo. Você entra na página dele e vê lá no seu blogroll com quem ele dialoga, o mantra que ele repete e a forma de escrever que ele reiventa. De forma que o esforço da crítica é hoje de ver mais a blogosfera que aquele escritor faz parte do que necessariamente isolar a sua escrita como algo original. Vivemos um período do coletivo como autor. É o inverso desde a invenção do livro, que, como dizia o Macluhan, inventou o público. A internet inventou o “amigo”. E toda crítica mais dura e mais relevante está em compreender como essa dimensão afetiva e subjetiva atravessa a crítica. É a amizade o motor da nova web, para além do bem e do mal. Veja um problema formidável para os estudos culturais, por exemplo: os realizadores estão dependentes da visibilidade trazida pela micromídia da rede. Através de um blog ou de um canal do Youtube, o “autor” cria a sua obra, recebendo aqueles insights fantásticos da sua comunidade, de forma que quanto mais produz, mais ele circula (mesmo que de maneira tautológica). Daí me pergunto: é possível criar num regime de fragmentação da atenção? Qualquer neurocientista vai lhe afirmar que isso é impossível. É preciso se dedicar às ideias, porque elas têm um tempo. Então o recolhimento do autor para produzir a sua linguagem é hoje um desafio, porque aquele autor-blogueiro é dependente do afago e da inteligência da comunidade que gira em torno dele. Não se trata de fãs, se trata de amigos. Então a criação se vê mergulhada nessa dependência por visibilidade em tempo real. Isso é um drama para os autores. Alguns resolvem publicando em seus blogs: “estou de férias, volto logo”. Há outros que ficam presos a essa Caverna de platão às avessas, onde se está preso às luzes e não às sombras.
– Os fluxos da publicação literária do século XX eram tais que o autor tinha um papel social, por exemplo, a do “intelectual público”, como se diz; o editor tinha uma função de modulação sobre esse intelectual público; o crítico tinha uma função de “autoridade” capaz de chancelar ou bloquear um autor, numa triangulação bastante bem definida. Esse modelo de fluxos é posto em questão quando os papéis sociais perdem a clareza, quando “o amador”, como se diz, tem um poder criativo que não tinha antes. Como se organizam os fluxos na nova realidade?
Eu não creio no aniquilamento do intelectual. O que há é uma transmutação. Por um lado, ele é jogado nas graças das relações diretas com o seu público. Sem intermediação, o intelectual precisa ser ainda mais claro sobre suas intenções e posições. O sentido de “autoridade” se faz à la algoritmos do Google: pela quantidade de links que lhe são direcionados. A autoridade paulatinamente se vê substituída pela relevância. E, neste caso, saem na frente, por enquanto, aqueles indivíduos e instituições que têm acumulado credibilidade e respeito já há algum tempo. Eles são uma espécie de ponto de partida para se legitimar algo na rede e fora dela. Mas, aos poucos, sua figura pública é inteligada a outras, criando uma espécie de clube da intelectualidade de massa, que é presente em milhões de assuntos de nichos. Há quem diga que isso seria a perda da capacidade de se constituir um público geral na sociedade ou mesmo como uma política de fragmentação, quando, na verdade, é só um diagrama de poder de novo tipo, cuja centralidade está na capacidade de se organizar em rede. Nesse sentido, a função do editor é uma função ambígua nesse novo diagrama. Porque, de um lado, tem de bandeja a curadoria da inteligência coletiva à sua disposição, fazendo com ele se defronte com um novo comportamento, que é de apostar naqueles que ganham relevância na rede. E, por outro lado, a contragosto, o editor não tem sozinho a capacidade de criar novos públicos. Isso realmente fica cada vez mais na mão do autor. Se pegarmos um autor típico da web no campo da literatura, como o Fabrício Carpinejar, o que veremos? Que ele foi formando e sendo formado pelo público através de seu blog, que agora lhe acompanha em revistas semanais e em sites independentes. Ou em livros impressos de sua editora. Não há antagonismo entre autor e editor, senão mais autonomia para o primeiro.
– Mesmo no modelo tradicional, o leitor é um crítico e o crítico é um leitor, porque o leitor tem um impulso de avaliação e o crítico, antes de avaliar, também frui do texto. Com a facilidade de discutir textos, poderíamos dizer que o impulso crítico do leitor ganha um impulso fantástico. Por outro lado, com o dilúvio de textos e imagens que a tecnologia digital oferece, há quem considere que esse impulso de criticar seja, na verdade, sufocado. Qual é o seu ponto de vista a respeito?
Há razão para apontar a internet como um pântano de imagens. Isso tem a ver com o festival de bordões repetidos na rede por milhões de pequenos fanáticos sobre os produtos de massa, que é um comportamento adesista ou mesmo uma atitude conformista perante a produtos em série. De certa forma esse fanatismo na rede pelos ídolos pop e de massa é financiado por estratégias de promoções e marketing em redes sociais e de todo um arsenal intelectual, cujo conceito de transmedia é uma das suas orientações mais simplória. E o fanatismo tem ao seu lado, muitas vezes, uma crítica jornalística e uma intelecutal frouxa, que se omite do seu verdadeiro papel: confrontar o poder, no lugar de ser parnasiana. Mas há todo um outro movimento que busca compartilhar idéias, críticas e pontos de vista. Nesse sentido, essa visão ingênua da participação em grau máximo na internet só dissipa o fato de que há muitos conflitos ao redor da própria concepção de compartilhamento. Veja o quanto de esforço vários países e corporações fazem para impedir o compartilhamento de dados e opiniões. É uma espécie de criminalização da amizade. O leitor não é leitor na internet. É amigo ou inimigo. O que significa, de modo geral, é que não há um puro sujeito do conhecimento em terras digitais, não há isenção de vontade, alheio à dor e ao tempo, que isolado é capaz de produzir a “verdade”. Essa pretensão teorética sempre veio da cultura do isolamento trazido pelo livro, que, em certa forma, os meios eletrônicos suplantaram desde a década de 30 e que a internet se opõe de maneira radical. Nietzsche dizia que que quanto mais afetos permitirmos atravessar sobre determinada coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade”. Me parece que estamos caminhando para essa profecia.
– Uma outra função da crítica é inserir os textos em perspectivas históricas, identificar continuidades e rupturas, criar linhas diacrônicas de entendimento dos textos. Esse processo acontece no universo digital? De que maneira?
Essa função sempre foi da crítica mais acadêmica. Sempre apareceu, no campo geral da crítica, mas como algo marginal, num tempo dominado pelas resenhas factuais em jornais e semanários. Ao mesmo tempo, sabe-se que o crítico sempre evitou analisar o primeiro livro, o primeiro filme, primeiro álbum. Sempre preferiu o segundo, quando se realmente testa um autor. O que isso significa? Que a crítica sempre foi histórica. Sempre rejeitou o seu próprio tempo. Nesse sentido, a internet virou uma plataforma onde esta questão continua intacta. As críticas históricas estão na rede do mesmo jeito que estavam antes, de maneira marginal. A maior parte da produção crítica se debruça sobre o lançamentos. Porque isso que as pessoas buscam: um serviço de qualidade para não se decepcionar com algum filme, livro, game, série de Tv etc. À diferença disso, surgem os novos formadores de opinião, que são capazes de articular a novidade com os cânones, com as referências histórias, com as adesões estéticas que determinado autor se vincula. Qual é a dificuldade então? É de cartografar quem são esses críticos mais densos, porque eles são milhares. E isso não é contraditório com a sua marginalidade num mar de milhões de críticos-fãs. E há neles a característica de um fazer crítica no espaço público, algo que era considerado uma heresia, porque sempre nos foi inculcado a ideia que o saber deve ser feito de maneira isolada, porque o caos o “fragmenta o saber”. Estamos vivendo o que o filósofo francês Michel Fouault chamou de “revolta dos saberes naif”, enfim, uma profusão de liberdades de expressão que antes ficavam deveras isoladas como saberes menores da sociedade. Nunca mais existirará o grande público que tanto Dominique Wolton mistifica. Não há mais possibilidade de existir o POVO (olha o Egito e a Tunísia mostrando essa impossibilidade!). O sucesso dos mashups na internet revela, num plano micro, essa mudança no patamar das democracias. Ao lançar um videoclip, Lady Gaga faz mais sucesso pelos vídeos e aúdios recombinantes que aparecem no Youtube do que efetivamente pela qualidade estética que carrega. O que esse mashups nos comunicam? Que sempre é muito simples produzir um ídolo pop, mas também como é fácil desmontar a maneira como esse trabalho é composto. Há casos de DJs melhorarem o ritmo de determinada canção de ídolos pop, inserindo trilhas e imagens oriundas de outros artistas. Em outros casos o DJ dá até dignidade a música desses ídolos, fazendo um trabalho de recombinação de tanta qualidade que esses mesmos popstars acabam incoporando a versão do DJ como a oficial. Trocando em miúdos; a era do pop star acabou, antes mesmo da morte do Michael Jacson.
– Com isso, chegamos à questão das licenças do tipo creative commons. A noção tradicional de direito autoral fica inteiramente comprometida com as possibilidades oferecidas pela tecnologia digital e o estabelecimento de uma cultura da recomposição, recriação etc.?
O Creative Commons representa o fato de o autor está no comando. É ele que tem o poder de licenciar sua obra. Nesse sentido, isso não tem nada de diferente com o espírito da lei dos direitos autorais. O que há de diferente é que ao estimular o papel mais político do autor, as licença CC carregam um outro espírito: de acabar de vez com a cultura da permissão que ainda vigora no campo da produção da cultura. Por isso que se diz “cultura livre”. Hoje a tecnologia permite isolar o som do Caetano velozo em frações de milésimos de segundo, de maneira que é impossível se saber a fonte original (provavelmente o próprio Caetano deve utilizar desse saber tecnológico em sua banda ou gravadora). Então para que lutar contra isso? é melhor criar um amplo campo de direitos e deveres que estimulem práticas de recombinação ao mesmo tempo que se garanta que um mercado mais diversificado e sustentável seja construído. Aqueles que compartilham o espírito Creative Commons colaboram com a concepção de que a obra precisa circular para o autor ganhar mais reconhecimento e trabalho. Vivemos no momento de transformação da idéia do que seja autor. Alguns artistas digitais já dizem que o verdadeiro autor é a rede. Duvido que algum criador, antes de iniciar um trabalho, não vá pedir ajuda ao Google. As recentes polêmicas entre Creative Commons e Ministério da Cultura, que deixa de licenciar seus conteúdos sob CC, demonstra como o governo Dilma recua nesse campo, vira a cabeça para o século XX, enquanto a Apple monta todas as suas estrategias econômicas em torno da cultura do compartilhamento. Só sabe usar Iphone quem sabe compartilhar dados e informações. à diferença da Apple para o Creative Commons é que o modelo jurídico do primeiro funciona sob licenças proprietárias rígidas, que tudo quer sobretaxar ou mesmo capturar.
Olá Fábio, onde posso encontrar mais sobre a “revolta dos saberes naif”, em qual obra Foucault cunha esse termo?
Parabéns pela entrevista.
Abraço.
Foucault fala sobre isso na primeira aula do curso “Em defesa da sociedade”.
Malini