Biopoder e a fábrica social

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O que a ciência nos entrega é uma grande sabotagem social.
(Antonio Negri)
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Antonio Negri insiste em demonstrar que a conceituação sobre biopolítica é ambígua. É, de um lado, a vida como objeto de governo; mas, de outro, a vida que não se oferece plenamente como dominada, abrigando toda a generalização da resistência. Isso – a ambiguidade – não se revela como dual, mas interior às próprias dinâmicas da vida subsumida ao poder: “toda dominação é sempre também uma resistência”, cutuca Negri em La fabrica de porcelana, p.46). Temos aí toda a filosofia política do antagonismo muito presente na obra do italiano. Só para reforçar: antagonismo negriano não tem pretensão de criar sínteses dialéticas. Só há derrotas e vitórias.

Em Negri, a análise da biopolítica é desenvolvida no marco da subsunção real do trabalho no capital, o que significaria dizer que não há mais tempo da vida, um tempo fora da relações de produção capitalística, porque “o tempo de trabalho inundou o tempo da vida”. De forma que toda nossa linguagem, nossa corporeidade, nossa comunidade, enfim, tudo aquilo que antes se dizia como campo da reprodução é  o locus preferencial da mercantilização e da captura dos capitais. A vida toda é mercantilizada, não importa sem em bytes ou se em átomos.

Não é dificil evidenciar que o  terreno da reprodução é hoje um locus produtivo de valor.  É só se debruçar sobre o conflito entre grandes corporações tecnológicas (Google, Facebook, Apple etc) para testemunhar como boa parte delas se dedica a fabricar máquinas imersivas por onde a vida passa e se fixa nos termos e códigos de uso de suas plataformas 2.0. Máquinas que hospedam a vida na forma de “status”, curtições, “atualizações”, “preferências”, “posts”, fotos, recados, testemunhos, enfim, modos de vida que estão cada vez mais dentro da dinâmica desse poder revitalizado do capitalismo 2.0 (veja toda a polêmica sobre a apropriação de dados privados então saqueados por agentes instalados nos ambientes do Facebook, Google,Twitter etc).

Em 2005, em palestra no Brasil, intitulada “A Consituição do Comum”, Negri explicita essa análise da biopolítica dentro do marco histórico da subsunção real da sociedade no capital, lançando a indagação se é possível existir num tempo em que toda a vida é mercantilizada. Isto, se é possível existir “fora” dessa relação de subsunção

Por que [o poder] é biopolítico? Porque implica efetivamente a vida, envolve formas de vida que são conseqüentes uma as outras, que estão ligadas uma as outras; porque a estrutura social e política entra como elemento absolutamente fundamental na vida de cada pessoa; porque já não é possível distinguir, como se fazia na velha tradição marxista, o valor de uso e o valor de troca; porque estamos totalmente dentro da capitalização e, portanto, da exploração da vida.

A subsunção formal e real, o que é?

O tema da subsunção real da sociedade ao capital está presente em diferentes momentos da obra de Negri. Em Trabalho de Dionísio, escrito com Michael Hardt e publicado em 1994, os autores associam o tema (de Marx) à passagem à nova forma de acumulação capitalista. “A subsunção do trabalho é real quando os próprios processos trabalho nascem dentro do capital, quando o trabalho é incorporado não como um fato externo, mas como uma força interna, própria ao capital”, analisam.

Em Marx a etapa da subsunção real do trabalho ao capital é antecedida pela subsunção formal do trabalho ao capital, quando ainda as forças capitalistas gerem o trabalho – que se apresenta como algo alheio ao capital, “uma força estranha importada”, como uma força que se comandava dentro de um maquinismo mecânico, que tornava o trabalho, portanto, em força burra e repetitiva. Nesse sentido, o poder se revelava como uma disciplina imputada aos trabalhadores, indivualizados e parcializados dentro da indústria ao mesmo tempo que socializado através de uma cooperação social que se dava através da divisão social do trabalho, cuja maquinaria se transformava constantemente por aplciações trazias pelas ciências naturais, a mecânica, a química, etc. No “paradigma” da subsunção formal, o capitalismo precisa reconhecer a centralidade do trabalho. “O irredutível  alheamento do trabalho obriga o capital a reconhecer dois papéis distintos na produção, o do trabalho como fonte de riqueza social e do capital como comando”.

O trabalho, portanto, nessa fase é o motor da riqueza social. E não é à toa que todo aparelho jurídico-ideológico do Estado começa a constituir os “direitos trabalhistas”, já num deslocamento de soberania, cujo poder reside em fazer do corpo mais produtivo, mesmo que essa produtividade seja contabilizada na quantidade e qualidade da força física aplicada ao maquinário. É nesse período (a partir do final do século XIX) que ganha destaque a mediação do Estado, que gradualmente se torna um dos elementos mais importantes do governo do trabalho. A historiografia dos movimentos sociais é farta em demonstrar a transição dos conflitos entre capital e trabalho que, antes, somente se fazia dentro das fábricas, para, em seguida, sobretudo no século XX, ocorrer também contra o Estado Capitalista.

Mas essa fase da “subsunção formal” já passou. A fase calvinista já foi pro beleléu.

O maior desejo do capitalismo sempre foi anular o “trabalho como medida de toda as riquezas”, ocultando-o e fazendo transparecer que o sistema capitalista funciona e trabalha por conta própria.  Sem dúvida, a ciência e a tecnologia foram fundamentais para esse obliteramento do trabalho como fonte de todas as coisas, à medida que a habilidade operária é substituída lentamente por uma outra: o virtuosismo diante às novas tecnologias.

A massificação do uso tecnológico (e o informático ainda mais) facilitará a penetração do capitalismo em todos os espaços e tempos sociais, deslocando o papel das organizações capitalistas: de gestoras que comandam o trabalho para um aparelho de captura das inovações espalhadas pela sociedade, que é obrigada a se apresentar como uma “fábrica” social mais do que umo largo locus do exército industrial de reserva. O governo do biopoder, então para Negri, é cada vez mais o controle do uso tecnológico e dos modos de vida postos a trabalhar por essa inteligência massificada espalhada na fábrica social. Isto é, a o modo de produção já não se faz a partir do operário individual senão na capacidade de trabalho social combinada (trabalho com as mãos, com a mente, um é engenheiro, outro é gerente, outro é físico, outro laboratorista, enfim, todo um conjunto de novas funções do trabalho.

“Nesta transformação o que aparece como pilar fundamental da produção e da riqueza não é nem o trabalho imediato executado pelo homem, nem o tempo que este trabalha, mas sim a apropriação de sua própria força produtiva geral, sua compreensão da natureza e seu domínio da mesma graças a sua existência como corpo social: em uma palavra, o desenvolvimento do indivíduo social” (Antonio Negri, em Fabbriche del soggetto, 1987).

O que demarca bem essa subsunção real do trabalho é o fomento do desenvolvimento livre das individualidades, que se concretiza em política de estímulo à formação, artística, cultural, científica, por compreender que o “capital humano” se forma no tempo livre, porque é ali que ele cria novos meios e dispositivos de produção a partir da cooperação social (Negri gosta de usar o termo “mais comunidade” para explicitar esse processo da exploração da vida, do “tempo todo”). É assim no antigo terreno da “reprodução” que o biopoder foca. Nesse caso então o trabalho excedente se torna condição de vida e morte para o novo capitalismo. E o perigo maior para este é quando, no trabalho excedente, os sujeitos se põem em exôdo, isto é, quando constroem seus próprios meios de produção, seus próprios mercados, sua própria Constituição, mobilizando e criando assim novos modos de produção de riqueza.

Essa filosofia política aberta por Negri sobre o contemporâneo, apoiado na crítica ao biopoderinaugurado por Foucault, nos possibilita uma crítica dura ao capitalimo atual, sobretudo, o seu aspecto informacional.
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A rede (ou a fábrica social) subsumida ao capital

Porque ao debruçarmos sobre essa etapa da subsunção real, analisamos que o capitalismo contemporâneo carrega uma enome contradição: a inteligência que ele captura é a mesma que pode lhe capturar ou lhe suprimir, através da invenção de novos modos de economia, o que poderíamos denotar de exôdo (autovalorização do trabalho). Não é difícil perceber todo um conjunto de mobilizações sociais que fundam novas economias a partir de estruturário solidárias e baseadas na autonomia, na liberdade e no compartilhamento. Por isso que a fábrica social que a Apple Store celebra e armazena, cobrando pedágios e gerindo a inteligência oletiva, é ao mesmo tempo captura e controle do exôdo. Captura das inovações para otimizar os lucros. E controle do exôdo, na forma de abrigo e difusão das inovações sociais, compartilhando parte dos lucros com estes ou mesmo fazendo-os circular pela cultura do compartilhamento do qual a própria Apple se beneficia.
Assim, no novo pacto hegemônico do capitalismo 2.0, a inovação deve ser controlada ao mesmo tempo que difundida. Em outros termos, não se trata de comandar a produção, mas de controlar a circulação, gerir o tempo da socialização do conhecimento, do saber, da criação. Isso porque o valor não se extrai mais do tempo do trabalho excedido, mas do controle do tempo da difusão da inovação, seja ela fabricada na empresa ou na fábrica social. “O que você está pensando agora?”, diz o lema do Facebook, que explica a violenta concorrência entre corporações 2.0, sedentas pelo controle geral da vida.

Para as corporações 2.0 não importa se uma revolução social possa  atravessar o Facebook (como os casos do Egito, Tunísia, Irã e tantas outras lutas mobilizadas nas redes sociais). O importante é que elas não ameacem e criem um exôdo (a autovalorização do trabalho) dessas máquinas 2.0 que são também mecanismos de controle da mobilização, tal como faz o Google ao impedir que usuários busquem arquivos torrents ou o próprio Twitter não agregando em seus Trending topics o termo “wikileaks”, deixando-no invisível aos usuários da rede.. Antes de indagarmos se uma revolução será twittada, cabe-nos compreender a quem a revolução interessa, se ela será um luta social cuja autovalorização do trabalho é o seu fim, ou se trata de liberdade para novos consumidores do novo capitalismo.

Para controlar o exôdo, uma das estratégias do novo capitalismo é o “compre e mate” . Investir em startups e comprar aqueles outros que, porventura, ameacem determinado monopólio. A massificação do uso tecnológico não se trata de febre democrática, mas de estratégicas bem definidas de controle do tempo do “ócio criativo”, que, de ócio, não tem absolutamente nada. Por isso que, na contramão, todo esforço dos movimentos sociais desde o final do século XX será de criar instâncias de autovalorização da sua força de trabalho como medida de se fazer em exôdo ao “BBB da criação social” e exigir novas constitucionalidades: reparem como a subjetividade operária de hoje reivindica, através de lutas sociais, a libertação dos mecanismos constitucionais que aprisionam o intelecto ao copyrght e as regras rígidas de propriedade industrial.

“Capacidade produtiva, força, invenção, vida e vivacidade do trabalho que, na medida em que nega a submeter-se ao capital, exige liberar-se e desenvolver formas políticas adequeadas ao descobrimento de nova base produtiva (baseada na invenção e na inteligência), diz Antonio Negri em 1977, em “A forma-Estado”, ao se referir ao novos conflitos pelos processo de autovalorização das forças produtivas. E complementa demonstrando toda perseguição que sofria è época por afirmar o que hoje é o óbvio: “Do Capital aos Grundisse, dizemos, da crítica da valorização capitalista à ciência da autovalorização operária: este é o caminho que hoje não é lícito” (La forma-Estado, p.25).

Há poucos dias, no Brasil, a ministra da cultura resolveu retirar a licença Creative Commons do site do ministério. A licença mantinha uma segurança jurídica para aqueles que buscavam utilizar os conteúdos do site para determinados usos estabelecidos pela licença. É claro que, na prática, a maior parte dos conteúdos que circula no site do MinC é de informações institucionais, pouco estimulantes a criações mais bem elaboradas, contudo, a licença CC garantia, no mínimo, a replicação desse conteúdos, o que ajudava, e muito, que as informações do MinC se espalhasse pelas teias da rede. Mas isso acabou. E arranhou, senão rompeu, a relação entre militantes da cultura livre e o Ministério da Cultura.

O exemplo é bom para mostrar que o Estado é capaz de “constitucionalizar” o biopoder, garantindo a reserva de mercado às estruturas capitalísticas de novo (o cognitivo) e velho tipo (o fordista). Ambas detestam a autovalorização operária (que hoje se designa como operário social, travestido de nomes como inteligência coletiva, multidões inteligentes etc), porque essa autovalorização é capaz de fundar novos mercados, deixando de fora aqueles que se esforçam em manter o saber como algo criado por poucos ou por aqueles que que vivem como corsários da criação de seus próprios ancestrais. No lugar de apoiar aqueles que compartilham cultura, essa “turma do contra” quer deixar as criações apodrecendo nos porões climatizados das indústrias do copyright (e do MinC).

O gesto de abrigo de uma flexibilização dos direitos autorais permitia ao MinC chamar de comum aquilo que hoje é público na aparência, mas privado na prática. Antes, o gesto do MinC chama-se neoliberalismo.
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Referências:
NEGRI Antonio, HARDT, Michael. O trabalho de Dionisio: para a crítica ao Estado pós-moderno. Juiz de Fora: Editora UFJF, 1994
NEGRI, Antonio. La forma-Estado. Barcelona: Akal, 2003
NEGRI, Antonio. La fabrica deporcelana. Buenos Aires: paidós, 2006
NEGRI, Antonio. La fabrica del sujeto. Barcelona: Akal, 2006