O “ih, fora!” e a volta do Zé Carioca

Decepcionar é um prazer.” (Gilles Deleuze)

No excepcional discurso de Gilberto Gil, em 2003, então empossado como ministro da cultura, o artista baiano afirmava: “Não cabe ao Estado fazer cultura”. O cantor-ministro espantou geral, muitos dele riram. Como se sabe, Gil fez uma gestão revolucionária, de escala global. A lógica do ministro era a de fazer algo bem contemporâneo, que chamou de  do-in antropológico. “Avivar o velho, massagear o novo”.  A herança de Gil parece que passa ao largo da administração cultural da capital, ainda presa a visão folclorista da cultura. Mas um folclorsmo de tipo novo. A folclorização da cultura pop. A receita é assim: transforma-se algo em pop, depois o pop em um cult folclorizado.  É uma operação que dá no mesmo de sempre: samba, suor e cerveja, a mesma equação que tanto tempo, pré-Gil, fazia a alegria dos salões burgueses nos tristes trópicos. E que transformaria os gabinetes de cultura numa caixa de repasse de verbas para uma clientela preferencial.

O problema é que a cultura do hit “já era”, como dizem os funkeiros. A cultura do hit pertence às festinhas anos 80, 70, 60… (já repararam que festa anos 90 ninguém faz?). O que “já é” é a tranformação da política cultural numa argamassa de uma sociedade permeada por milhares de pontos e nichos de cultura que estão articulados em rede. O problema que essa rede tem sido montada, em alguns lugares, sem estado e sem mercado, como é o caso de Vitória. E essa rede é o “novo” que precisa ser massageado.  Nesse sentido, como é possível ainda se gastar tanto dinheiro público em pop stars fakes? Para que massagear essa wanessada toda, esse limbo cultural que vegeta em criatividade e só faz girar a cultura do pequeno fanático (fã, que significa pequeno fanático)? O contra argumento poderia ser: de novos os intelectuais contra o gosto massivo. Falso engano. A cultura popular é marcada pela resistência. E a lógica industrial de massa, sabemos, é feita a partir da lei do mais forte. O samba – por exemplo – sempre foi popular, até quando começou a ceder e fazer enredos homenageando empresas, marcas, cidade, políticos etc.

Estamos a ver um novo modelo de gestão cultural em Vitória. Há uma pretensão utópica: Vitória ser o lugar de grandes espetáculos. Nada tão provinciano no momento em que o mundo já está bem aqui, ao nosso lado, e a questão é como jogar o mundo aqui, e aqui no mundo. Ao contrário, insiste-se no velho modelo getulista: por que não transformar “Sol’s” em pequenas Wanessinhas ?  Por que não criarmos zécariocas? O radical talvez seria ver é um mashup de wanessas, zé’s e sol’s . Isso que seria notável.  Mas, para isso acontecer, é preciso cultivo (de onde vem a palavra cultura), tempo para a criação, para a produção cultural e um novo olhar sobre o que é a cultura hoje.  Não adianta juntar, é preciso recombinar, remixar, samplear.

Senão o pop vai virar folclore. E o sertão vai virar mar.

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Escrevi esse artigo há uns cinco dias. Como muitos sabem, acredito muito na gestão (da cultura) da capital. Há tempo para intervi-la com a palavra, quer coisa melhor?  Tive dúvidas e, confesso, até receio em publicar. Mas, hoje, depois de domingo, quando o público da Wanessa gritava “Ih fora, Ih fora, Ih fora” para o experimental da banda Sol na Garganta, decidi publicar o artigo aqui mesmo no blog (iria para outro lugar, mas forças ocultas…).

Em certo momento, a plateia gritava para a banda: “chão, chão, chão”, numa espécie de interação sádica, do tipo “de onde vocês saíram? que coisa de banda são vocês, eu quero a Wanessaaaaaa!!!! Era a demonstração cabal da situação da cultura na cidade.  É isso o resultado de uma política cultural baseada no fomento do pequeno fanático. É aquilo que o Gil dizia, o “Estado não deve produzir cultura”. Inventou de produzir cultura, deu nisso: “tudo na chão, chão, chão”.

1 Comentário

  1. forças ocultas?! empresa de eventos, shopping vitoria, grupo buaiz, investimentos imobiliários, eleições … talvez seja uma grande “corrente pra fente” em parceria com o Estado e ainda acredito que no meio existam pessoas que pretendem fazer um trabalho com conteúdo, não?

  2. Aqui em Santa Catarina nós temos o famigerado festival Planeta Atlântica (do grupo RBS de comunicação que é filiado à Globo e domina TV, rádios e impressos em SC e RS). O evento tmb segmenta as artrações entre Palco Principal (para os Fresnos da vida) e o “espaço cool e menos adolescente” como eles mesmos tagueiam batizado de Palco Voador. É nesse palco que as bandas “alternativas” (sic) catarinenses ou gaúchas constumam se apresentar. Foi de uns anos pra cá, depois de inúmeros protestos das bandas daqui (com ênfase na batalha travada pelas bandas q formavam o extinto Clube da Luta) é que o Planeta Atlântica começou a abri um o palco principal para artistas que estão fora do “mainstream”. E qual não foi a minha surpresa ao ver a banda Aerocirco (integrante do Clube da Luta) subir ao palco principal do blaster festival e ser ovacionada pela platéia, grande parte de adolescentes, cantando as músicas. Não sou entusiasta da banda mas foi bonito de se ver. (link do vídeo abaixo)
    Espero que aí no ES platéias melhores se formem. Que as bandas se unam e lutem por isso. Por que um Sol só não faz verão.
    http://migre.me/gY0S

  3. Oi, Angela

    Também acho que o que falta é um planejamento mais consistente, mais pensamento estratégico, estamos ainda numa visão personalista em alguns setores, e tem tanta gente bacana por cá, cheio de ideias, projetos, ações.

    A questão é articular, ou seja, é fazer política.

  4. Assim q eu vi a programação, senti aquela pontinha de intuição: isso não tem mta cara de q vá dar certo. Wanessa, oh céus!, nada tem a ver com a Estação Porto. E menos ainda com a nova cultura musical, q se pretende – graças! – cada vez mais livre!
    E viva a morte do popstar – o útlimo suspiro foi no enterro de Michael Jackson; viva o fim dos pequenos fanáticos! Tem realmente mta gnt boa por aqui, fazendo música, criando coisas diferentes dos hits exaustivamente repetidos e repetitivos pelas am’s e fm’.
    E sobre as forças ocultas, sugiro à prefeitura – pelo perfil do cliente – q procure a assessoria do prof. Robert Langdon.

  5. Cara! Tô pasmo com o vídeo e com o relato!
    Eu sabia que tinha havido hostilização, mas isso é ignorância pura.

  6. Me parece que o ambiente em Vitória é de desconfiança geral. Empresas, artistas, estado…público (lembra do Dia D?). Veja o que houve com o ousado projeto Omelete Marginal, que nem teve o governo como parceiro principal…

    Fiquei durante algumas semanas jurando que era a Vanessa “Da Matta”, pois recusava-me a acreditar que o Sol tocaria com Wanessa Camargo. Ledo e Ivo engano.

    “Estação Porto” é uma idéia brilhante, mas que acaba reunindo as mesmas pessoas de sempre. É quando vira, no máximo, “um espaço bacana para uma cidade que carece de espaços” nas rodas de intelectuais da cultura capixaba (acredite, existe).

  7. Também acredito muito no projeto da estação porto, um porto seguro para “massagear o novo, revivar o velho”.

    A Wanessa tem seu trabalho, podemos criticá-las, elogiá-las etc. Como artista também um valor social, um custo baseado naquilo que entende melhor pra si.

    Mas tudo foi um grande equívoco. Vitória tem tudo pra dar certo, aprofundar e produzir uma gestão cultural mais avançada.

    Valeu, Léo, tens trabalhado para dar um novo rumo à Universitária, a partir disso, novas maneiras de pensar a vida, o mercado, o público.

  8. Direto do meu Gmail:

    Fábio, boa tarde!
    Acabei de ler sua crítica na lista da ABD-ES. Poderia assiná-la também não fosse pelo uso equivocado da palavra “folclore”. Há cerca de dois meses, quando li uma matéria na Gazeta de um filme sobre o grupo terrorista Baader Meinhof, cujo título era “fase negra da história”, imediataente retruquei o jornalista, dizendo que ele poderia utilizar-se de expressões como “obscura” ou seja lá o que valha, mas, “negra”, carrega um tom preconceituoso, pra não dizer racista, muito grande (e ajuda a propagar a idéia de “negra” como coisa ruim) . Trabalho com culutra desde 1979, quando atuei no Cineclube Universitário e felizmente nunca deixei de estar no meio cultural, batalhando pela cultura do Espírito Santo e de nosso Brasil. Muita gente costuma dizer sobre coisas que são contra a vida, por exemplo rinha de galo como sendo “cultural”. Não aceito isso! Cultura é pra libertar o homem e seu espírito. Através da cultura é possível conhecer o outro, aceitar o outro, e conviver em harmonia. Desde, que a CULTURA seja para a vida, sem ter nela ações que atentem contra a vida, pois, isto na verdade é anti-cultural, anti-cultura.
    A discordância é porque o folcore é justamente onde está através do tempo – decênios e por vezes séculos – a resistência cultural de nosso povo. Capixaba, brasileiro… Veja por exemplo os Caramurus e Peroás. O Ticumbi, que desde sempre fez a crítca à Aracruz Celulose “nós não comemos calipe” e é uma manifestação folclórica que é típica do Espírito Santo. Tá certo, que o Congo, o Jongo, o Ticumbi, o Alardo, as Folias de Reis, o Boi Pintadinho não agrada a todos. Eu mesmo tenho muitos amigos do roquenrol que não curtem, mas, o valor dessas e de outras manifestações folcloricas capixabas e do Brasil é imenso.
    Pra ser sincero, minha discrença é maior que a esperança de que a cultura em Vitória consiga encontrar um rumo. Gil saiu, Juca assumiu e a cultura no Governo Federal seguiu evoluindo. Quem dera que Vitória tivesse uma “visão folclorista da cultura”. Em 2008 e ano passado o “desfile da diversidade cultural” (com dezenas de grupos folcloricos do Estado e ano passado com os Auturos de Contagem – MG, sensacional) no centro de Vitória, que teve como principal organizadora a Comissão Espírito-santese de Folcore, e a PMV apenas como apoiadora = fomentadora das manifestações culturais, foi algo emocionante, e quem viu e acompanhou, sabe que o folclore, seus grupos e manifestações, não pode (m) ser utilizado (s) como sinônimo de “atraso”. Não exite esse negócio de “folclorização da cultura pop”, nem “folclorismo de tipo novo”. É muito mais adequado e mais fácil dizer o que aconteceu de verdade, a “banalização” de uma proposta – Estação Porto – que teve um início promissor, e nessa retomada está se mostrando tão equivocada em sua proposta, quanto a utilização do “folclore” como sinônimo de “banalização” e coisas velhas e retrógadas, o que é completamente “fake”.
    By the way, disse a Fabrício e Hugo que o Sol estava muito “punk” no show do Porto mas, era uma provocação à mudança no som deles, que começou bom e continua bom. Vida longa ao Sol (embora eu seja um dos maiores suspeitos pra falar deles e do som deles), e justamente colocá-los pra abrir aquela outra apresentação que não cabe na proposta do Estação Porto é que me faz um descrente total na kultura de nossa kapital…..
    /Aquele /Abraço,

    Tião Ribeiro

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