Passado uma semana do fim das eleições presidenciais, o caso Mayara Petruso já caiu no esquecimento. Mas relembrar é viver.
Logo após anúncio da vitória de Dilma Roussef, no dia 31 de outubro, enquanto os eleitores petistas comemoravam, uma onda raivosa na internet associava a vitória de Dilma aos votos que recebeu dos nordestinos. 7 em cada 10 votos da região Nordeste foi para a candidata do “cara”, que obteve 56% dos votos válidos. A ciberonda anti-nordestina era o retrato fiel á dupla operação midiática dessas eleições. Por um lado, a imprensa nacional passou quase um ano com o meme “o nordeste vai ser o fiel da balança eleitoral”; por outro, a candidatura de José Serra pautava uma agenda política (o medo, a moral e a família) conjugada a uma virulenta campanha de disseminação de trolagens virtuais e telefônicas das mais baixas contra a candidata do PT, levado a cabo pelo vice, Índio da Costa, e pelo marketing online tucano, com seus bots spammers. Esses dois fatores acabaram servindo como ingredientes para liberar geral os eleitores conservadores mais radicais. Foi aí que Mayara Petruso apareceu e disse (e depois foi amplamente combatida e detonada na própria internet):
Nordestito não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado. Mayara Petruso.
Mayara Petruso externalizava aquilo que “estava no ar” já algum tempo: o ódio contra o voto dos pobres, principalmente o dos nordestinos. E ela acabou por servir de bode expiatório para toda uma cultura ventilada no período, denunciada pelo ótimo artigo de Maria Rita Kehl, no dia das eleições do primeiro turno. A reação rápida contra Petruso na internet (seu nome foi assunto mais twittado no mundo, em determinado momento) deu o tom da polarização Serra x Dilma. Mais discursos odiosos surgiram na rede, agora, contra Petruso, que logo se deletou da web. Sumiu, virou poeirinha de bits. Mas a máquina raivosa ficou presente, polarizada. Naquele instante, o Eu Mayara – aquele cartesiano – foi-se da internet. Mas a máquina odiosa, onde Mayara se instalou para produzir seu discurso, continuou de pé, presente na cabecinhas daqueles que pensavam, sob a égide de um distanciamento e de uma crítica da realidade, que seus enunciados eram construções autênticas de uma consciência plena de si, quando, na prática, ao reproduzir o dito do regime secular de poder da produção de opinião no país, só fazia repetir uma variedade de enunciados que dizia que tudo era culpa do nordeste. Pois que, por um lado, a crônica política conservadora dizia com todo afinco que o Nordeste seria o causador do crescimento eleitoral de Dilma, levando a todo tipo de argumentos mais simplistas, do tipo: quanto mais se é pobre e com pouca escolaridade, mais se vota com o governo de Lula. Logo, o Nordeste é Dilma; como se o Brasil fosse amplamente desnordestizado no Sul e dessudestizado no Norte e Nordeste. Essa era uma crítica fina da crônica política, imagina! E, de outra parte, essa máquina incitava a negativa contra aqueles que decidiam seu voto no interior da “concepção nordestina” do voto, isto é, na libertação daquela posição escravocrata de resignar-se ante aos poderosos, afirmando a sua visão de mundo. 56% dos votos válidos expressaram essa potência nordestina para além da política do medo, do preconceito e da moral difundida pelo outro lado.
Para quem entende um pouquinho de internet sabe que nenhum perfil é isolado. Ninguém está sozinho numa rede social. Ele está conectado a outros, dentro de um mundo específico, numa zona de conforto, onde aquele que escreve comunica-se para “pares”, que recebem, em geral, bem o seu discurso. Quando há dissidência, com frequência, ela é respondida. E se a discordância teima em existir, o usuário no Twitter bloqueia a oposição, quando não “unfollow-na”. Se houve um efeito colateral dos piores nessas eleições foi o usuário-eleitor ter percebido que sua timeline ficou todinha homogênea. Éramos produtor e consumidor de uma rede homogênea de enunciados. Estávamos numa tautologia das mais perigosas, a rede política experimetava aquilo que geralmente os jornalistas vivem diariamente: a agonia em verificar que os jornais vivem em um mundo só; e que a repetição é a forma mais difundida de se criar a verdade dos fatos . Eu me supreendi, por exemplo, no day after, em ver que minha timeline estava um tédio só, com um monte de gente repetindo bordões e palavras de ordens pró-Dilma, candidata em quem eu votei. Comecei, a partir daquele momento, a entrar em, e se filiar a, outros mundos para sentir toda pluralidade que faltava à minha rede. Nesse sentido, todos nós tivemos um pouco de Mayara Petruso nas nossas cabecinhas. Não no sentido de incitar o racismo. Mas de ser impaciente com a dissidência, com o ponto de vista contrário. É claro que nem toda dissidência significa uma abertura à possibilidade de uma dialogia, tampouco nos faz tolerantes a racismos, moralismos e ódios de classe.
Agora o curioso foi um movimento muito estranho: o de imputar a Mayara o status de criminosa, por ter afirmado aquilo que muitos outros afirmavam na internet. Vale à pena ressaltar que o discurso de ódio deve ser separado de um crime de ódio. O discurso de ódio se combate com a produção de discursos de liberdade, de produção e afirmação de direitos. Ao buscar prender e arrebentar, como numa espécie de linchamento público, o que se devolve para sociedade é mais discurso de ódio. Uma coisa é dizer que vai matar; outra é matar. Em países de forte tradição da liberdade de expressão, não há impedimento/censura à circulação dos discursos de ódio, porque eles são concretos e nada velados na sociedade. Ao conhecê-los, a sociedade toma medidas para contrapô-los, na forma de discursos, ou na forma de leis. No caso Mayara, a OAB-PE entrou na justiça acusando-na de incitação pública ao crime. Não só ela, mas “todos” aqueles que twittaram algo semelhante contra os nordestinos (inclusive, tweets feitos por nordestinos). A OAB entrou na justiça para defender a raça pura nordestina contra qualquer tipo de violação racial na internet. Será que se alguém pedir a seu amigos virtuais para fumarem maconha, a OAB-PE vai denunciar o caso como incitação pública a um crime? Há aqueles que dizem que a liberdade tem limite. Sem dúvida, há inúmeras responsabilidades a cumprir quando se diz algo. Mas a afirmação do ódio, infelizmente, é regido pelas mesmas normas da afirmação do amor. E, politicamente, cada vez mais, vamos precisar de atuar publicamente na descontrução do ódio, sobretudo, o ódio de classe, num país que, nunca dantes na história, ver as desigualdades de classes se reduzirem.
Desculpe, amiguinho, mais esse era o discurso da inteligentzia judia lá por 1930/1932.
Cinco anos depois, estavam, ou fugindo, ou fingindo de mortos para não ver a verdade alemã, ou mortos de verdade.
Ódio se combate com Lei. Porque do discurso para o ato de ódio, a distância é nenhuma, é questão de ocasião.
O problema é, depois, com a lei no colo, você se tornar uma maníaco legalista. Entendeu, amiguinho?